“Crimes Of The Future” é o regresso de David Cronenberg à sua melhor forma e aos temas que o tornaram num autor de voz e estéticas únicas. Disfarçado de policial noir, o filme é uma discussão sobre temas individuais que se projectam na sociedade, e de que forma podem ou não ter influência positiva ou negativa na mesma. É provocatório, claro, porque Cronenberg não sabe não o ser, mas é sobretudo um alerta pessoal e pessimista (ou optimista, dependendo do ponto de vista) do autor sobre o rumo que a sociedade está a tomar.
A sinopse de “Crimes Of The Future”
Saul Tenser (Viggo Mortensen), artista performático famoso, mostra publicamente a metamorfose de seus órgãos em performances de vanguarda, com a ajuda da sua parceira Caprice (Léa Seydoux), uma cirurgiã traumática. Uma investigação policial da brigada de novos vícios vai envolvê-lo, e levá-lo a questionar as implicações éticas, morais e humanas da sua arte e da sua própria natureza.
A dicotomia corpo/mente e a forma como um influência o outro, em relação a nós próprios e aos outros, é aqui ampliada (e em certa forma também reduzida) a uma sociedade projectada num futuro incerto, que resulta da observação que Cronenberg faz dos sintomas identitários da sociedade actual. A afirmação do ser humano através da imagem, é uma tendência que não dá sinais de parar de crescer (cirurgias plásticas, tatuagens, atc.) e Cronenberg antecipa o futuro como uma extremização dessa tendência. A consciencialização do corpo e suas metamorfoses, naturais ou não, são a base para uma narrativa que se propõe colocar em debate, mais do que debater ela própria, o efeito que o culto da imagem, quando base para uma afirmação pessoal, pode ter em nós enquanto indivíduos ou na sociedade, e principalmente na relação entre os dois.
Claro que isto leva a imagens fortes e provocantes, com Cronenberg a regressar ao body horror que tanto explorou ao longo da sua carreira com melhores ou piores resultados. Mutilações, corpos estranhos performativos, cirurgias explicitas transformadas em arte, tatuagens em orgãos, e até uma autópsia performativa a uma criança, são a parte mais visivelmente chocante desta proposta, mas não são o seu fundamento. São até o seu ponto fraco, por um lado, porque impede a discussão de chegar a mais pessoas (desde que estreou em Cannes são muitos os relatos de plateias que ficaram reduzidas a menos de metade). Porque “Crimes Of The Future” é muito mais do que o seu shock value.
É, talvez estranhamente, extremamente erótico e sedutor. Nesse sentido, é o irmão mais novo de “Crash“, filme de 1996 em que Cronenberg explorava como as alterações fisicas involuntárias (ou não) interferiam no desejo, ampliando-o até. Aqui, uma das frases que sustentam a narrativa é ‘a cirurgia é o novo sexo‘. Ou seja, a interferência na carne, a sua alteração, a admiração das suas imperfeições mais ou menos criativas são rastilhos para a sedução, para a atração, para o prazer sexual e sensorial. E Cronenberg filma-o com extrema elegância e bom gosto, tornando-o o mais belo e sensual possível. E resulta, quer se seja mais ou menos fetichista, vulnerável ou erótico.
“Crimes Of The Future” é também uma reflexão sobre a arte e o seu propósito. O que pode ser considerado arte, quais os seus limites, a sua moral e, principalmente, a sua ética. Quando questiona se determinada performance é arte, Saul pergunta: Qual a sua formação emocional? Qual a sua compreensão filosófica? Acompanhando o processo das suas criações entendemos que estas questões são fundamentais para que sejam entendidas como arte, e sejam o pré-requisito de qualquer criação artística, o seu fundamento. Uma perfomance sem fundamento (o que mais se vê hoje em dia) será arte? E se for, não estaremos a caminhar para uma sociedade sem fundamento, anárquica e individualista?
Portanto, “Crimes Of The Future” é sobre evolução, na sua essência. A investigação policial que une todos os aspectos da narrativa é interessante mas não importante. É praticamente um MacGuffin, que abre caminho para as questões essenciais que devem ser debatidas. E pelo filme estão espalhadas muitas pistas que devem ser levadas em conta nesse debate. A dada altura, alguém se refere ao sexo tradicional (sem recurso a cirurgia ou transformações físicas) como old sex. Há também alguém que diz sentir o desejo de abrir a face. Há quem justifique a moral da arte com a consensualidade. fala-se de desordem evolutiva e criação de beleza interior. Cada momento da narrativa justifica que se abra o debate, com o risco de que o nosso futuro seja este.
E depois há a questão artística do próprio filme. Quase qualquer frame pode ser emoldurado e colocado na parede, tal é a sua riqueza plástica. Dos tons secos e sombrios da fotografia de Douglas Koch, da tensa e belíssima música de Howard Shore, da direcção artística de Dimitris Katsikis e Kimberley Zaharko e das interpretações de Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart e Scott Speedman forma-se uma uniformidade artística que dá solidez à narrativa e a torna (mais) suportável. Depois, no trabalho de Cronenberg, que também escreveu o argumento, há um desconforto latente e constante, que sublinha o seu pessimismo e nos chama à discussão urgente destes temas fracturantes.
Este é talvez o trabalho mais objectivo e inquieto de Cronenberg. E o mais provocatório, o que não quer dizer pouco. Mas é também o mais sensual, o mais carnal, o mais angustiante. Requer estômago, mas mais do que isso requer consciência, sentido crítico e algum sentido de humanidade e empatia. É uma obra completa sobre o futuro, onde, se formos a ver pelas redes sociais, tudo o que fizermos será crime.
Classificação: ★★★★½