“Princípio, Meio e Fim.”… mas de quê?

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Princípio, Meio e Fim.” é o novo programa de Filipe Melo… perdão, de Bruno Nogueira para a SIC. Este lapsus linguae feito com os dedos vem do hábito de escrever sobre o Filipe Melo e do nervosismo de escrever sobre esta coisa televisiva estranha que ninguém sabe bem o que é. Mentira, não há nervosismo nenhum, até porque o que isto é é mais um genial trabalho de descontrucção sobre o formato televisivo e mais um passo na busca constante pelo que ainda não foi feito. Algo a que o Bruno já nos habituou, portanto.

O conceito é simples e complexo ao mesmo tempo, difícil de explicar mas imediatamente assimilado assim que se começa a ver. “Princípio, Meio e Fim.” divide em 3 partes o processo criativo de um programa de ficção: o princípio é a escrita, a fase do ‘criado por’, o meio é a fase de produção e o fim é a fase de concretização, em que os actores executam o guião e uma equipa regista-o. Esta última fase é ainda dividida em duas, primeiro vemos o resultado final, aquilo que geralmente vemos em qualquer programa de ficção e depois, no genérico final (imediatamente a seguir a um irritantemente posicionado spot publicitário), os bastidores desta última fase.

Ora, ao dividir a criação de ficção desta forma, sintetizando-a, Bruno e os compinchas de criação Nuno Markl, Salvador Martinha e o já mencionado Filipe Melo enriquecem o processo ao colocar a mesma luz do produto final nas fases obscuras do processo. O genial fato de macaco dos escribas é aqui (e só aqui) irónico. Não é a primeira vez que o Bruno trás prá frente o backstage, basta olharmos para a genial “Odisseia“, disponível na RTP Play. E é por causa disso que aqui se incluem alguns twists no processo criativo: têm apenas duas horas para criar o guião de cada episódio, de pé e com apenas um computador e obstáculos impostos pela produção para desconcentrar os autores. Esta, a fase do princípio é a mais importante e definidora de todo o conceito.

E resulta. Por várias razões: os 4 autores conhecem-se bem e nós conhecemo-los bem (graças a “Como É Que o Bicho Mexe“), o que cria dinâmicas criativas e momentos de entretenimento puros e orgânicos. A forma do guião ao final das duas horas é o que é depois reproduzido pelo elenco, esteja como estiver. O elenco, Nuno Lopes, Albano Jerónimo, Jessica Athayde, Rita Cabaço e o próprio Bruno Nogueira também estão muito bem entrosados (só Rita não entrou no ‘bicho’, o que foi colmatado este domingo). Há um traço, contínuo e acomulativo, entre as três fases, e isso é a essência de todo o projecto. E o seu risco, porque num tempo em que tudo é imediato, ter de pensar a ver um projecto de humor pode ser pedir demais ao vulgar espectador.

Mas não é, devido à referida naturalidade com que tudo é feito. Aliás, a maior proeza deste projecto é a forma como parece fácil a sua estruturação e execução, desde os cenários, ao guarda-roupa, etc. As diferentes fases estão bem separadas no tempo e no espaço, o que facilita a leitura e torna tudo mais coerente, o que parece um contrasenso. Só o facto de o que é discutido nas primeira e segunda fases se reflectir na terceira torna tudo mais consistente. A forma como uma frase está escrita influência a sua leitura, os erros de continuidade de uma personagem, as dificuldades de conseguir um efeito de luz, etc. Toda a acção criativa tem uma reacção representativa e isso é o mais entusiasmante para quem assiste a este processo.

Este é acima de tudo, como é normal nos projectos de Nogueira, um projecto assente na originalidade da idéia. Daí eu falar no inicio da busca pelo que ainda não foi feito. E “Princípio, Meio e Fim.” não foi, ou não tinha sido. A única coisa que me coloca dúvidas sobre os restantes episódios da série é se a sua estrutura fechada não os tornará repetitivos ou monótonos. Se calhar é por isso que são só 6 episódios. Ou, se calhar começarão a desconstruir o conceito já a partir do próximo. Ou não. E esta incerteza prova a originalidade do conceito, como se ainda precisássemos de uma prova cabal e definitiva.

Resumindo, há uma relação muito forte entre “Como É Que O Bicho Mexe” e “Princípio, Meio e Fim.”, a começar pelo inteligente e oportuno convite da SIC e pela inclusão no projecto de grande parte do ‘elenco’ do seu antecessor. E que o processo criativo por detrás do ‘bicho’ continuasse aqui, com todos a darem um contributo essencial na sua criação. A certeza que temos de que precisamos de mais projectos destes, com gente assim, é a mesma certeza com que sabemos que são muito, muito raros. E que é preciso aproveitá-los.

Classificação: ★★★★½

“Princípio, Meio e Fim.” é exibido na SIC nas noites de Domingo e pode posteriormente ser visto na plataforma Opto, com uma conta gratuita.

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