“The Haunting Of Bly Manor” – Flanagan de Luxo.

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Mike Flanagan. Quem costuma visitar este espaço sabe o apreço que tenho pelo homem, que considero o mais sólido e inventivo realizador a trabalhar o género do terror actualmente. “The Haunting Of Hill House” é, para mim, uma das melhores séries de sempre, e tem provavelmente o melhor (e maior) jump scare de qualquer série ou filme. Era grande a ansiedade em relação a “The Haunting Of Bly Manor“, temporada autónoma de uma (agora) antologia entitulada simplesmente “The Haunting“. Mas estará esta obra baseada no(s) clássico(s) de Henry James à altura do hype criado pela sua antecessora?

Primeiro que tudo, há que definir que são obras diferentes. “…Hill House” é um drama familiar de terror, enquanto “…Bly Manor” é uma estória de amor gótica. Em comum têm os fantasmas, cujas assombrações dão o título (e o mote) à antologia. Em segundo, aquela que é talvez a maior diferença entre as duas, a estrutura. “…Hill House” tinha uma estrutura muito clara e definida, que era óbvia para os espectadores desde o ínicio. A partir do momento em que nos apercebemos que os primeiros 5 episódios são centrados em cada um dos filhos do casal Crane, existe uma clareza e, sobretudo, uma fundação temporal e narrativa que nunca nos deixa à deriva. Em “…Bly Manor” isso não acontece, o que a torna mais exigente para o espectador, sobretudo na primeira metade.

O resto é semelhante: somos introduzidos a uma estória base (narrada pela belíssima Carla Gugino, regressada de “…Hill House”) e vão-nos sendo fornecidas peças soltas de um puzzle que nos levará a uma imagem conclusiva tão compensadora quanto inesquecível. Em “…Hill House” era uma narrativa a dois tempos, aqui existem pelo menos 3 (que, com jeitinho, podemos esticar até 5), 2007, 1987 e meados do século XVII. Estes 3 tempos são bem definidos, mas o do meio desdobra-se, em factos ocorridos um e três anos antes. Esta fragmentação, sem aviso, ajuda a tornar “..Bly Manor” mais complexa e até confusa. Mas existe uma excelente razão para isso, a diversidade das fontes que lhe dão forma.

Para não revelarmos muito, a sinopse deve ser apenas isto: ‘uma ama com um passado traumático é contratada para cuidar de duas crianças numa mansão rural em Inglaterra’. A partir daqui é filigrana narrativa, dirigida por Flanagam que, ao contrário de “…Hill House”, apenas realiza o primeiro episódio de “…Bly Manor”. A sua influência é porém notória, e, com a excepção propositada de um episódio, há uma consistência formal que contrasta com a fragmentação narrativa. Isto tem a ver com a base: apesar de “…Bly Maner” se basear em “The Turn Of The Screw” de Henry James, vai também buscar acontecimentos e personagens a muitas outras estórias e contos do autor. Aliás, o nome de cada episódio é o nome de cada um desses textos, como se Flanagan nos estivesse a alertar para a sua importância na criação mais complexa e fragmentada, e a deixar pistas para os conhecedores da obra de James.

Outro facto interessante que vem desta mistura é a canção “O Willow Waly” (cuja versão original podem ouvir no fim deste artigo), criada por Georges Auric e Paul Dehn para o filme “The Innocents“, de 1961, outra adaptação de “The Turn Of The Screw” (talvez a mais célebre das mais de 20 adaptações que o romance já teve). Flanagan polvilha a narrativa com os versos e/ou a melodia de “O Willow Waly”, seja na voz da narradora (as primeiras palavras que lhe ouvimos são os primeiros versos da canção), na voz de Flora ou na banda sonora dos “The Newton Brothers“. Ouvimo-la até numa caixa de música que pertencera a um dos anteriores habitantes da mansão. E encaixa que nem uma luva em tudo. Aliás, a maravilha de “…Bly Maner” está precisamente na forma como a adaptação de tanto material diferente resulta tão coesa.

E, falando dos The Newton Brothers, que já tinham assinado a banda sonora de “…Hill House”, tenho de referir que voltam a fazer um trabalho assombroso em “…Bly Manor”. Nesta banda sonora (que ouço enquanto escrevo isto) conseguem não só incluir “O Willow Waly”, como também não esquecer algum do trabalho feito para “…Hill House”, como a música do genérico ou a belíssima frase para piano que ainda hoje não esquecemos. Isto sem prescindir da frescura de um trabalho original que consegue ser ainda mais presente e emotivo do que na primeira temporada. E não é só na música que encontramos ecos de “…Hill House”. Há frases e imagens que nos remetem directamente para a primeira temporada, mas estão de forma quase subliminar, com se fossem easter eggs, para serem descobertas pelos mais atentos.

Formalmente, “…Bly Manor” é ostensiva e fascinante. A direcção artística é fundamental para a relação do espectador com a narrativa, e funciona em prol do que Flanagan tem planeado para nós: tensão. Há também diversidade, pois Bly Manor é maior do que Hill house, com uma propriedade que tem também um lago e uma capela, fundamentais para a narrativa. Há um cuidado maior na direcção de fotografia em dar dimensão às imagens. Vindos de “..Hill House”, é impossível não vasculhar atentamente as imagens, principalmente o que está em segundo plano, à procura de fantasmas. E eles existem, mas ao contrário do que acontecia na primeira temporada, em que muitas das aparições eram apenas para criar número, aqui nós ficamos a conhecer, ao longo da estória, todos eles, mesmo os que não interagem directamente com os personagens principais.

Isto leva-nos ao irrepreensível elenco. Primeiro, os regressados: Victoria Pedretti, Oliver Jackson-Cohen, Henry Thomas e a já referida Carla Gugino estão à altura daquilo que nos acostumaram em “…Hill House”, e fazem um excelente trabalho a criar distanciamento em relação às personagens anteriores (embora demore um ou dois episódios a habituarmo-nos ao sotaque carregado que têm aqui). Mas as novas adições são também dignas de relevo: Amelie Bea Smith e Benjamin Evan Ainsworth são as crianças, e são absolutamente impressionantes, principalmente nas nuances de comportamento e tom das personagens, peças fundamentais da narrativa, e conseguem ser tão aterradores quanto doces. T’Nia Miller é a maior das surpresas, como a atormentada governanta da mansão, devido à sua segurança e profundidade emocional. Amelia Eve é a belíssima jardineira com forte personalidade e Rahul Kohli é o divertido e reconfortante cozinheiro. E há que mencionar também Tahirah Sharif , a anterior au pair de Bly Manor.

E depois há o episódio 8. Quem viu “…Hill House” lembra-se certamente do magnífico episódio 6, “The Two storms“, diferente de todos os outros pela sua estrutura e carga emocional. Aqui é o episódio “The Romance of Certain Old Clothes” que têm essa função, de fazer a diferença formal e agarrar-nos emocionalmente à estória. É aqui que tudo se torna claro, razão pela qual acontece já muito próximo das revelações finais. E é importante mencioná-lo porque é aqui que regressam duas actrizes fundamentais de “…Hill House”, Kate Siegel (Theo) e Katie Parker (Poppy), aqui as irmâs Viola e Perdita, em mais duas interpretações perfeitas. O episódio serve também para sublinhar a atenção dada aos pormenores em toda a série, e para nos lembrar que, mesmo que estejamos por vezes perdidos na estória, mais cedo ou mais tarde tudo fará sentido.

Para terminar, é preciso reforçar que “The Haunting Of Bly Manor” é uma grande estória de amor (com ênfase na palavra grande), que não deve ser comparada a “The Hauntig Of Hill House”, apesar de terem muitos elementos semelhantes. O problema desta segunda temporada, se é que tem algum, é esperarmos que estas personagens se agarrem a nós desde o ínicio, como acontecia na primeira temporada. Esta temporada é mais exigente, mais complexa e temos de lhe dedicar mais atenção e benefício de dúvida. Flanagan sabe disso, e sabe também que a recompensa tem de ser grande. Não só  a recompensa emocional, que está lá e bate forte, mas a recompensa de sabermos que assistimos a uma das melhores e mais complexas adaptações de uma obra literária já feitas.

Classificação: ★★★★

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