O penúltimo convidado da nossa iniciativa de aniversário é o Armindo Paulo Ferreira, do Ecos Imprevistos. Apesar de vivermos na mesma cidade, nunca nos encontramos, mas temos uma longa relação online, em que seguimos atentamente o hobby um do outro. E é daquelas pessoas com quem tenho uma enorme empatia, sendo que a prova disso está aqui neste artigo. Quando fiz os convites aos participantes desta iniciativa, não lhes pus condições nem restrições às escolhas. Acontece que, relativamente a 2017, 0 Armindo optou pelo meu filme preferido desse ano (sobre o qual já escrevi aqui), sem imaginar sequer que o realizador seria outro dos participantes nesta iniciativa (podem ver a participação do José Pedro Lopes aqui). Obrigado Armindo, pela tua participação. Temos de ir tomar um copo um dia destes…
A escolha do Armindo Paulo Ferreira – “A Floresta Das Almas Perdidas” de José Pedro Lopes.
2017 não foi assim há muito tempo. Na verdade, foi praticamente ontem mas se pensarmos em recuar até 2009, já sentiremos a distância de muita da vivência que passou por nós.
“O futuro é constituído apenas de velhice…”
Foram tempos interessantes, onde muitos de nós desbravámos terreno pela blogoesfera. Eu já cá me movo desde 2007, no “Ecos Imprevistos”, um blogue que na verdade nunca soube bem o que queria ser mas sabia o que era: um espaço onde eu assumia total liberdade de abordar o que mais me entusiasmaria no momento.
O inocente altruísmo e a vontade de partilhar era o que nos movia a alma, um fogo que nos alimentava a criar e manter espaços para expressar a voz da opinião, tal como este blogue é também exemplo.
Não pretendíamos ser “almas perdidas” numa imensa “floresta” de informação fragmentada, pelo que novas formas de comunicação despontaram e, algum tempo depois, seria o Facebook a unir, num grupo, as “árvores” da blogoesfera cinéfila, com o “Bloggers Cinéfilos”.
Uns com os outros, ainda mais nos fomos descobrindo. Cada qual surgia com os seus traços únicos, as áreas que mais apreciava, defendiam-se abordagens e opiniões.
O Pedro Afonso, um blogger também do norte e da mesma cidade que eu, continha desde logo uma característica suplementar que me suscitava sempre curiosidade: de entre os seus vários temas e filmes que todos conhecem também juntava à equação o seu acompanhamento ao FantasPorto.
“Este local é assombroso, não é?”
Os anos passaram, as edições sucederam-se e foram em si a confirmação desta característica relevante. Está aqui um incansável do Fantas, sem se colocar em bicos-dos-pés ou se vangloriar pelo feito. Pelo Pedro Afonso, sentiam-se os ecos da movida do festival, enquanto despertava os nossos radares para outros filmes.
Não deve ser nada fácil acompanhar um festival de cinema. Ainda mais do fantástico, como o é o FantasPorto, um género indefinido hoje em dia, qual caldeirão, que já não suscita a mesma relevância na actualidade. O festival merece-nos a reverência. Foi no Fantas que conheci o primeiro do Tarantino, que desbravei imensas obras obscuras (ainda hoje desconheço) e, entre tantos outros mais comerciais, que vi pela primeira vez o filme “The Wall” dos Pink Floyd. No entanto, a vida avança, esmorece também e o Fantas era algo que eu já não assistia. Por isso, sabia-me bem todo aquele feedback dado pelo Pedro, neste seu laxanteCULTURAL.
“A tristeza durará para sempre.”
Não dá para ficarmos tristes pois a vida muda e com ela, nós também. O mesmo sucede com a vida dos blogues, que actualmente sofrem da falta de dedicação que se dispersou imenso pelas redes sociais. Muitos dos blogues tornaram-se zombies. Digo-o por experiência própria e por isso admiro a perseverância dos que combatem a apatia com actividade fresca.
Quando o Pedro me convidou para esta sua iniciativa de comemorar os 10 anos de existência do laxanteCULTURAL, fiquei muito surpreendido e honrado. Foram 10 anos a dar-lhe! Aceitei de imediato com grande agrado, ainda desconhecendo o que até seria necessário da minha parte.
Relembrar o ano cinéfilo de 2017 e dele escolher um filme, apesar da aparentemente ingrata tarefa, acabou por se tornar muito fácil para mim. Entendi que tinha intenções de trazer algo singular. A escolha recaiu num filme português, independente e transversal ao género do terror e que, além da breve passagem comercial no cartaz nacional, teve honras de FantasPorto.
Vá… chega de memórias e vamos então ao:
“A Floresta das Almas Perdidas”
Portugal, 2017
Realização de José Pedro Lopes
Com Daniela Love, Jorge Mota, Mafalda Banquart, Ligia Roque, Lília Lopes, Tiago Jácome, Débora Ribeiro…
Sinopse: “A Floresta das Almas Perdidas é um lugar ficcional que, nesta história, se localiza numa zona fronteiriça entre Portugal e Espanha. O seu nome deve-se ao facto de ter sido o local escolhido por muitos para terminar a sua vida. Neste lugar sombrio, os destinos de Ricardo e Carolina cruzam-se. Ele é um homem destroçado que tenta encontrar o sítio exacto onde a filha se suicidou; ela, uma rapariga fascinada pelos mistérios da morte. Ao dissertarem sobre a dor e o valor da existência, estes dois estranhos acabam por criar uma intimidade inesperada…”
Inicialmente desenvolve-se com uma abordagem muito cativante ao tema do suicídio e à introspecção única que cada um terá da vida e do valor que tem nela.
Afigura-se como um vistoso exercício de estilo com uma premissa bastante interessante pelo tema do suicídio, executando o conceito de questionar motivações com mestria filosófica ao longo de uma primeira parte que, merece ser dito, achei-a brilhante e fulgurante, remetendo-se à insinuação por áreas do fantástico mas que não perdura no segundo ato do filme devido à mutação temática que a obra inflige a meio com um twist inesperado mas não menos corajoso.
O filme é sedutor e muito bem conseguido visualmente, especialmente ao nível da direcção artística e da fotografia esmerada que o faz brilhar. A aura (quase) fantasmagórica é exacerbada na opção intemporal do preto-e-branco, para potenciar ainda mais um inicial efeito de incerteza que instala no espectador, aludindo que tudo poderá acontecer e que muitos rumos dispõe para seguir.
Acho que o preto-e-branco peca só nas ocasionais inconsistências dos seus tons negros que se afiguram por vezes mais cinzentos. Um mero apontamento apenas que em nada reduz uma realização de toada mais académica mas inspirada, simbólica e de plena capacidade até na construção da passagem do tempo.
Uma palavra de apreço pelas performances dos actores, todos globalmente bem, com Daniela Love muito interessante na composição mas o maior destaque atribuo mesmo a Jorge Mota e a Mafalda Banquart por actuações (e presença) de grande naturalidade (especialmente na colocação da voz).
“Sinto que não consigo sobreviver a mais uma temporada terrível. Desta vez não conseguirei recuperar.”
Mais consistência ao tema inicial, mais remetido ao insinuado fantástico, teria catapultado o filme a outros níveis, sendo que a segunda parte inscreve-se já noutro género (creio até já merecedor do uso da cor, apesar de uma opção estilística como essa o faria perder coesão). No entanto, é aqui, com a viragem surpresa do seu twist, que a verdadeira natureza da obra se revela perante nós e que muito sinceramente seria merecedor da exploração de futuras novas narrativas com a protagonista.
“A tristeza não pode durar para sempre.”
Essa mesma mudança temática, a novos terrenos cuja sobriedade alimentam um novo espicaçar de curiosidade e cujo engenho do argumento nos faz perceber que foram anteriormente desfilando perante nós as peças de um puzzle subtil para arrebatamento conclusivo.
O cinema português precisa de receber mais vezes este tipo de ousadias por outros géneros, produzidos com um vincado esmero e dedicação como se encontra neste único “A Floresta das Almas Perdidas”.
Uma visualização repetida, revelará a inteligência de um filme verdadeiramente melhor apurado do que parece e que não nos pede mais que apenas a nossa entrega em o degustar.
7/10 Bom
A minha escolha – “Mother!” de Darren Aronofsky.
Como já manifestei várias vezes, tenho um enorme carinho pelo filme do José Pedro Lopes, e é o meu preferido de 2017. Mas, tivesse eu feito um top de melhores do ano, ele ocuparia o 2º lugar, tendo sido despromovido já nos primeiros dias de 2018, quando vi “Mother!“, do Darren Aronofsky. Eu sei que o José Pedro não mo leva a mal, já falámos sobre isso, e contra factos não há argumentos. O problema é que eu gostaria de perceber melhor porque é que o filme do Aronofsky é efectivamente melhor. Eu consigo defender “A Floresta Das Almas Perdidas” com unhas e dentes, mas não me sinto capacitado para fazer o mesmo com “Mother!”. A única resposta a isto é que, sendo eu ateu, ver este filme é o mais próximo que poderei estar de uma experiência religiosa.
Um casal vive numa casa isolada. Ele é um poeta aclamado numa crise de inspiração, ela dedica-se às tarefas domésticas e a restaurar a casa, depois de um incêndio a ter consumido algum tempo antes. A chegada de um estranho, e consequentemente outros, vai desequilibrar a harmonia e lançar o caos (ou a ordem) nas suas vidas.
“Mother!” funciona, pelo menos para mim, a um nível subliminar, quase hipnótico, em que a razão é subjugada a uma narrativa nem sempre verosímil, mas 100% contagiante. É claro que Aronofsky tem um propósito, uma intenção, mas nem sequer interessa qual é. A forma como estrutura a narrativa e o cuidado que põe na composição dos planos é razão suficiente para este ser um dos melhores filmes do ano. Mas há mais elementos que elevam ainda mais a fasquia, sendo o mais importante as interpretações.
Fundamental para não nos preocuparmos com a falta de verosimilhança em alguns momentos é a interpretação de Jennifer Lawrence, naquele que é provavelmente o seu melhor trabalho. Há uma contenção que sugere subjugação, sem nunca ser referida, que é essencial para a forma como aceitamos a sua passividade em relação aos abusos de que é vítima por completos desconhecidos, e até mesmo pelo homem que ama. A sua beleza é retratada de forma quase religiosa, com uma componente etérea que é essencial para as muitas teorias que podemos criar para o final da estória, mais uma vez sem interessar qual ou quais estarão correctas.
Javier Bardem tem também uma interpretação magnífica e com uma diversidade de tons crucial para o tom geral que Aronovski pretente para este seu evangelho. Mas imprescindiveis são também os contributos de Ed Harris, Michelle Pfeiffer, Brian Gleeson, Domhnall Gleeson, Kristen Wiig ou Stephen McHattie, só para nomear os mais conhecidos . Interessante também é que se atentarmos aos créditos, nenhum dos personagens tem nome. Lawrence é Mãe, Bardem é Ele, Harris é Homem, Pfeiffer é Mulher e todas as outras personagens representam características, como Neófito, Fornicador, Insolente, Mijão, Esteta, Adúltero, Pessoa que segreda, Bom samaritano, Executor, Penitente e por aí fora.
Esta falsa generalização humana não é inocente, sugere um propósito e incita ao distanciamento, talvez para nos tentar poupar à crueldade do desfecho, apesar da tensão que nos acompanhou desde o início. “Mother! ” é essencialmente um drama que apela ao mistério e ao terror, mas a verdade da crueldade que encerra torna-o humano, e tão próximo de nós que nos fica entranhado no espírito. Não é explicável, acontece.
Resumindo e concluindo, “Mother!” não é um filme para todos (nenhum filme do Aronofsky é), é exigente, inquietante, manipular e doutrinador, e a compensação de o ver só chega muito depois de o acabarmos. É imprescindível a sua digestão, e isso não só é incompatível com a urgência de consumo actual, como transforma Aronovsky num autor absoluto e intransigente.
Classificação: 5/5
Espetacular o emparelhamento que aqui juntaste com duas obras que são atrevidas, para interpretar e sobretudo para repetir pois ambos são filmes que pedem ser vistos em nova visualização.
No texto (que ilustraste tão deliciosamente – very cool – com as frases flashbacks ao filme) já me estiquei demasiado (longo sim mas saiu-me assim naturalmente) e apesar de haver sempre muito a dizer fico por aqui para novamente expressar um muito obrigado pelo convite e sucesso!
Eu é que agradeço a amizade e disponibilidade com que respondeste ao meu convite. E por teres escolhido tão bem o filme… ?