10 Anos / 20 Escolhas #2 – 2010.

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Continuamos a reviver os 10 anos do laxanteCULTURAL com a ajuda de bloguers amigos, e, para 2010, contamos com o Rui Baptista do Bela Lugosi Is Dead. Por razões pessoais e profissionais, o Rui, enquanto bloguer, está a atravessar um período sabático, e o seu blog com foco no terror está offline. Conheci o Rui no primeiro Fantasporto a que fui já como bloguer, em 2010, e foi daquelas pessoas em que a empatia foi quase imediata e com quem é um prazer discutir os filmes após o seu visionamento. Enquanto não regressa a estas lides, o Rui amavelmente aceitou o meu convite, e escolheu um filme que vimos nesse mesmo Fantas, e sobre o qual já escrevi aqui. Obrigado Rui, e espero que este desafio te tenha despertado “o bichinho”, e voltes em breve a brindar-nos com o teu espaço especial.

A escolha do Rui Baptista – “Thirst” de Park Chan-wook.

Thirst - Poster

A convite do Pedro Afonso e a propósito do 10º aniversário do seu blog, laxanteCULTURAL, fui convidado para escrever sobre um filme de 2010. A minha escolha incidiu quase de imediato no filme realizado por Park Chan-wook, um dos meus cineastas favoritos. Não só o considero como um dos melhores filmes de vampiros – cuja justificação exponho nos parágrafos seguintes.

Thirsté um irreverente filme de vampiros, que explora o significado de humanidade e o sentimento de culpa e impunidade que vêm com as capacidades sobre-humanas de um vampiro que, pela primeira vez, se vê confrontado com o lado negro do homem.

Thirst 01

No principal papel encontramos Sang-Hyun, um padre que torna-se num ícone religioso ao ser o único sobrevivente do grupo de estudo de 50 indivíduos. Mas, ele tem um segredo que não partilha com ninguém: devido a uma transfusão de sangue, durante o estudo a que se sujeitou, tornou Sang-Hyun num vampiro, com capacidades sobre-humanas. Contudo necessita de consumir sangue humano para combater o vírus e se manter vivo.

No seu caminho tortuoso, enquanto trava uma batalha com a sua própria consciência, cruza-se com uma, aparentemente, inofensiva mulher do seu passado, Tae-ju, que o leva a ultrapassar as barreiras que impusera a si mesmo, numa descida aos infernos sem hipótese de retorno, e com apenas um desfecho…

Thirst 02

Divertido, irreverente, alucinante e até bizarro, são alguns adjectivos que melhor descrevem este filme. “Thirst” é uma desmedida sátira à sociedade, mas acima de tudo uma crítica pungente à nova religião dos sul coreanos, o cristianismo. Na Coreia do Sul quebrou vários tabus, tendo mesmo sido complicado arranjar actores para interpretarem alguns dos papeis centrais, devido às cenas arrojadas que o argumento exigia. Talvez por isso mesmo seja difícil apagar da memória as personagens fortes, bem construídas e a forma inteligente como Park Chan-Wook tratou de temas tão delicados.

Sem grandes margens para dúvidas, Thirst é um dos melhores filmes de vampiros das últimas décadas. E igualmente obrigatórias são as seguintes obras do mesmo realizador: a trilogia “vingança” (“Sympathy for Mr. Vengeance“, “Oldboy e “Lady Vengeance), “I’m a Cyborg, But That’s OK e “The Handmaiden. Obras tão dispares entre si mas que exibem bem todo o enorme talento de Park Chan-Wook.

A minha escolha – “José e Pilar” de Miguel Gonçalves Mendes.

José e Pilar - Poster

Durante os primeiros anos de vida deste blog, aceitei a obrigação (generalizada pela blogosfera) de fazer um top 10 anual, relativo aos filmes estreados em Portugal. Com o tempo, essa obrigação esfumou-se por várias razões, sendo que as principais eram o trabalho imenso que dava ver, à última da hora, os filmes que me tinham escapado e que poderiam integrar essa mesma lista, e a possivel injustiça em relação aos não vistos que ficaria emoldurada nestas páginas. Ao passar os olhos pelo meu top relativo a 2010, e pelas estreias em Portugal no mesmo ano, deparei-me imeditamente com duas dessas injustiças, por coincidência, ou talvez não, ambos filmes portugueses: “José e Pilar” de Miguel Gonçalves Mendes e “Filme do Desassossego” de João Botelho. Tivesse-os visto em tempo útil, e seguramente fariam parte da lista, mas só os vi passado uns meses, quando os comprei em DVD. Além disso, olhando agora para essa lista, à distância de 8 anos, não me reconheço totalmente nela. A ordem, pelo menos, não seria seguramente aquela, e em boa altura deixei de carregar esse fardo. Serve isto para dizer que a minha escolha para esta iniciativa teria de ser um dos dois, quanto mais não fosse para repor alguma justiça e ordem nesta modesta casinha. Dos dois, de que gosto igualmente muito, escolho o primeiro, por razões mais afectivas e talvez até filosóficas, que explicarei a seguir.

José e Pilar 01

“José e Pilar” retrata o dia-a-dia de José Saramago e Pilar Del Rio, durante a preparação e escrita de “A Viagem do Elefante“, publicado em 2008. Mas, mais do que isso, retrata carinho, compreensão, humanidade, responsabilidade, altruísmo e egoísmo, respeito e tudo o mais que faz parte da nossa vida em sociedade. Retrata também o pensamento, não o polido que está nos livros, mas o crú, em bruto, do nosso prémio Nobel, não enquanto resultado final, mas enquanto processo. Mas, acima de tudo, retrata aquele sentimento cujo substantivo só encontramos na nossa lingua: saudade.

José e Pilar 02

E é esse ponto, essa fatalidade, que torna este filme tão arrebatador. Saramago faleceu exactamente cinco meses antes da estreia do filme. Além dos intervenientes no próprio filme, ninguém mais o viu sem esse fatalismo, sem essa angustiante distância. Façamos um paralelismo com a obra posterior de Gonçalves Mendes, mais especificamente com o mais recente “O Labirinto da Saudade” (lá está ela outra vez), sobre o pensamento (mais do que sobre a pessoa) de Eduardo Lourenço. Não existe neste último a nostalgia latente no primeiro. Eduardo Lourenço continua contactável, mesmo que nunca o façamos. Há uma proximidade etérea que nos torna próximos do objecto do filme e que sugere que a história não termina ali. No caso de Saramago e deste filme, nunca estivemos tão próximos e simultanemente tão distantes.

José e Pilar 02

E depois há Pilar. Cada declaração que Saramago lhe faz, cada apontamento, cada olhar, dói. Percebe-se, no decorrer do filme que estamos a observar amor, complementaridade, e que esse já só existe enquanto saudade. E, goste-se ou não de Pilar (e eu confesso que embirro um bocadinho com algumas atitudes recentes dela), é impossível não sentir empatia e solidariedade. E até alguma da sua presumível dor. Essa proximidade, que o filme nos obriga a ter, é o que o torna tão especial, por ser tão dificil de conseguir. Os filmes mais recentes de Gonçalves Mendes são cinematográficamente superiores, quer em concepção quer em execução. Aqui há apenas observação, contemplação. Nos outros (e falo concretamente nos que vi, “Nada Tenho de Meu” e “O Labirinto da Saudade”) existe uma complexidade subjectiva no tratamento dos temas que permite alguma criatividade formal e narrativa. “José e Pilar” tem uma desarmante honestidade que não deixa espaço a interpretações. Só permite sentimento.

Classificação: 4/5

Uma última nota apenas para referir, como se fosse precisa mais alguma justificação para a minha escolha, que 2010 foi também o ano em que perdi o meu pai. Tudo o que escrevi antes, sobre “José e Pilar” pode ter um paralelismo com esse facto, e foi obviamento escrito com o coração na ponta dos dedos.

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