"Better Call Saul" – O Regresso à Arte de Vince Gilligan.

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Um dos regressos mais esperados da televisão, seria o do universo de “Breaking Bad”, com tudo o que isso tinha de bom e de mau. Seria um spinoff, o que à partida incutia alguma incerteza sobre a qualidade e interesse do mesmo. Também foi dito que seria uma comédia, o que indicaria uma mudança de tom (apesar de haver muita comédia, disfarçada de ironia e cinismo, em BB). Mas a maior incógnita seria se se confirmaria que Vince Gilligan é mesmo um génio ou se a estória de Walter White teria sido um tiro de sorte.


Agora, que já estrearam três episódios, já temos respostas para isto tudo, mas começamos com uma pergunta que interessará a muita gente: será que “Better Call Saul” é apropriado para quem não viu “Breaking Bad”? É, mas é tão melhor se tivermos visto BB. As subtilezas, que sempre fizeram as delicias de quem viu BB, são aqui levadas a outro nível, com piscadelas de olho aos fãs, mas sobretudo com implicações na narrativa. Por exemplo, o primeiro episódio termina com uma arma apontada à cara de Saul, o que só por si é um bom cliffhanger, mas Gilligan mostra-nos quem a aponta, e para quem viu BB e sabe quem é o personagem, esse cliffhanger não só adquire uma maior dimensão, como nos enche de entusiasmo, nostalgia e… tensão.


E são estas pequenas coisas que faziam de “Breaking Bad”, e fazem também de “Better Call Saul”, logo à partida, uma série de culto. Mas há mais: os primeiros seis minutos são uma cold opening, muito populares em BB, porque não tem relação com o episódio em si, mas remetem para acontecimentos, passados ou futuros, que deixam pistas que serão recuperadas mais tarde. Aqui, mais uma vez, quem viu BB sabe que estamos no futuro, depois dos acontecimentos com Walter White, mas essa revelação é feita com cuidado e de forma subliminar. Mais uma vez, a mestria de Gilligan está nos pormenores, naquilo no nos mostra ou deixa de mostrar, fazendo excelente uso das técnicas à disposição e obrigando-nos a usar bem os sentidos e a memória.


“Better Call Saul”, como BB, é um jogo. Vão-nos sendo dadas pistas, aparentemente aleatórias e sem interferência na narrativa, mas à medida que ela avança vão-se preenchendo os espaços temporais que ligam tudo. Como já se sabia, os acontecimentos desta temporada acontecem seis anos anos do encontro com Walter White, quando Saul ainda é Jimmy McGill e tenta afirmar-se como advogado. O importante aqui, para já, é conhecer Jimmy, definir-lhe moral e personalidade, para o submeter a situações que o tornarão naquilo que já conheciamos. E isto é aquilo que torna “Better Call Saul” tão bom e cativante.


A mestria de Gilligan está mais apurada do que nunca, e a sua mente desafiante e criativa está ainda mais maquiavélica. O rigor narrativo é acompanhado por um irrepreensivel rigor técnico, que potencia a estória e torna o jogo mais desafiante. Gilligan volta a usar a fotografia como arma, usando a paleta de cores para definir o espaço temporal e os tons para definir humores. Os espaços abertos, especialmente o deserto tão usado em BB e onde situações extremas acontecem, está mais vasto e perigoso do que nunca. Poucos filmes têm o arrojo técnico e criativo que “Breaking Bad” foi adquirindo, e com que “Better Caul Saul” já começa.


Mas o grande feito de Gilligan aqui é fazer-nos esquecer, para já, de Walter White e Jesse Pinkman. Uma das grandes questões que fizeram correr muita tinta (e pixeis) nos ultimos tempos, era se assitiriamos aqui ao regresso da dupla. Apesar de isso ser inevitável, numa temporada lá mais para a frente, o que assistimos até agora foi já suficiente para perdermos essa ansiedade e estarmos mais interessados nos personagens que nos foram introduzidos, incluindo os que regressam de BB, mas que aqui ainda estão num estado embrionário daquilo que nos lembramos deles. E é essa metamorfose que torna “Better Call Saul” tão interessante: sabemos para onde vamos, mas não fazemos a mínima ideia de como vamos lá chegar.


Convém falar das interpretações, Bob Odenkirk está brilhante como Jimmy, sendo que o alcance da personagem é aqui mais vasto do que em BB. Devido às flutuações temporais, a mudança de registo é importantíssima e Odenkirk acerta sempre no tom. Jonathan Banks está também excelente na nova abordagem (ainda tímida) que faz a Mike. Raymond Cruz como o ameaçador Tuco Salamanca (sim, ele mesmo) tem, para já, as melhores deixas e entrega-as de forma desconcertante e intensa. Mas as novas adições ao elenco, são também excelentes, principalmente o veterano Michael McKean, como o irmão de Jimmy e Michael Mando como o primeiro vilão de serviço.


Resumindo, aconselho que vejam primeiro “Breaking Bad”, pois a experiência será mais forte e recompensadora, apesar de “Better Call Saul” sobreviver bem sem essa referência. E arrisco já dizer que será uma das séries do ano, pois é das coisas mais intensas, desafiantes e refrescantes que estão actualmente na televisão. A não perder.

Classificação (dos três primeiros episódios): 5/5

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