Depois de ter falado sobre “Hitchcock” aqui, chegou a altura de “The Girl”, outro filme com Hitchcock como personagem central, este produzido pelo canal HBO e exibido a 20 de Outubro nos E.U.A. Como já tinha dito, pelas fotos e trailers este telefilme parecia-me de longe melhor na recriação de personagens e ambientes. E isso de facto acontece.
Toby Jones parece irmão gémeo de Hitch e dá uma lição de interpretação, principalmente na reprodução de gestos, maneirismos e até no tom de voz e dicção de Hitchcock. A coisa está tão bem feita, que a primeira vez que o vemos é de costas, na cozinha a falar com Alma, e não temos dúvidas nenhumas de que se trata do mestre do suspense. Há planos gerais cruzados pela silhueta e andar característicos e a ilusão é perfeita. Tudo aquilo que poderá faltar a “Hitchcock”, o filme, está neste telefilme magnificamente executado.
Mas não é só Hitchcock que está reproduzido na perfeição, todo o elenco parece saído de um museu de cera a quem alguém deu movimento, mesmo as personagens secundárias. Posso dar um exemplo: sendo um fervoroso fã de Hitchcock, já vi dezenas de making of’s e documentários sobre ele. Quando Penelope Wilton entra em cena pela primeira vez, reconheci imediatamente Peggy Robertson, a assistente de Hitchcock, que participa em muitos making of’s que fazem parte dos DVD’s dos seus filmes. Tendo em conta que a Peggy que eu conheço tem pelo menos mais 30 anos do que no tempo que o filme retrata, isso quer dizer muito sobre a caracterização e o esforço de tornar estas personagens o mais fiéis possíveis à realidade.
O caso talvez menos conseguido será mesmo o da protagonista Sienna Miller, mas apenas nos grandes planos se nota diferença com os traços de Tippi Hedren. Nos movimentos e na recriação das cenas de “The Birds” e “Marnie” a composição é também imaculada.
Excelente está também Imelda Staunton, como Alma Hitchcock, outra recriação fiel das dezenas de fotografias espalhadas pelos vários livros que tenho sobre o mestre. Aqui se nota outra enorme diferença entre o filme e este projecto para televisão: em vez de ir buscar um nome conhecido (embora Imelda tenha já sido nomeada para o Óscar), optou-se por uma actriz menos chamativa, mas com mais parecenças físicas com a personagem.
Na recriação de situações, também o filme está tão fiel quanto possível, desde os testes de imagem de Hedren até às cenas clássicas saídas de “The Birds” ou “Marnie”. Se compararmos as imagens lado a lado notamos muitas diferenças, como no caso dos testes de imagem, mas a ilusão resulta e os acontecimentos estão reproduzidos de forma muito coerente.
Posto isto, seria óbvio pensar que eu adorei o filme, mas isso está longe da verdade. Aqui, o problema não está na forma, está no conteúdo. O realizador Julian Jarrold partiu de um livro de Donald Spoto, “Spellbound by Beauty: Alfred Hitchcock and his Leading Ladies”, cingindo-se apenas à relação conturbada entre Hitch e Hedren. Não se dá importância ao génio de Hitchcock enquanto realizador, embora este esteja subentendido, mas sim ao facto de ser um velho frustrado, impotente e com uma obsessão por louras, o que o leva a assediar a sua estrela contratada, chegando mesmo a ameaçá-la com o fim da carreira se não sucumbir aos seus desejos. Não me entendam mal, nada disto é mentira, mas reduzir o filme apenas a isto é reduzir Hitchcock a um mero cliché, e desprezar tudo aquilo que o fez ser um dos mais importantes e influentes cineastas de sempre.
Assim, o meu problema com “The Girl” é a intenção. Não se privilegia a construção de uma obra cinematográfica ímpar, mas o deslize de um homem a quem, a dada altura, se exigiu demais. O meu problema é que, quem não conhece Hitchcock e a sua obra fique a pensar que ele era apenas isto. Os meios investidos e principalmente o esforço técnico e artístico na recriação destes acontecimentos mereciam um resultado mais nobre, fiel e completo sobre o homem e a sua vida e obra. Assim, não passa de um telefilme tendencioso e exploratório.
Classificação: 3/5
Além do poster, fotos e trailers de “The Girl” mostro-vos também os testes de imagem de Tippi Hedren, e dois vídeos: uma entrevista em que ela fala dos acontecimentos aqui retratados, e a apresentação do filme “The Birds”, numa sessão especial promovida pelo American Film Institute. Se no primeiro se nota a gravidade dos acontecimentos descritos em “The Girl”, no segundo Tippi descreve o ambiente das filmagens e conta algumas histórias de bastidores, dando ênfase à honra que foi trabalhar com o mestre. Era isto que Julian Jarrold deveria ter feito, mostrado os dois lados da história.