‘A natureza humana é maléfica. Isso também se aplica à natureza das mulheres.‘
Esta frase, dita por Charlotte Gainsbourg em “Anticristo“, resume o essencial daquilo que o filme trata. E trata sobretudo de dor de corno. Não sei o que Lars Von Trier tem contra as mulheres (ele evitou responder quando esta pergunta lhe foi colocada em Cannes), mas o que é certo é que alguma coisa lhe devem ter feito. Este filme, um dos mais interessantes, intensos, complexos e aterradores filmes dos últimos tempos, mais não é do que uma tese ou ensaio sobre a natureza maléfica das mulheres, e de como isso leva os homens a excederem-se, ultrapassando os limites físicos e morais pelos quais se regem. É por isso um filme que tenta manipular e recrutar audiências para a causa, através de referências misóginas, mitológicas, teológicas e psicológicas. Mas comecemos pelo inicio…
Quando um casal está a fazer amor, o filho acorda, saí do berço, sobe à janela e atira-se, perdendo a vida. Ultrapassada a dor inicial, o homem, psicólogo, tenta ajudar a mulher a ultrapassar o desgosto e a culpa, levando-a para o lugar que percebe ser o epicentro de tudo o que a aflige: uma casa que têm num bosque, adequadamente chamado de Éden. Lá, vai ajudando-a a ultrapassar os seus medos e a enfrentar a sua dor, até a sua natureza maléfica (e a Natureza em geral) revelar a verdadeira identidade do mal.
Reforçando a ideia de que o filme é uma tese, está dividido em capítulos, entre um prólogo e um epílogo. O Prólogo é a cena que despoleta toda a acção, a morte da criança. É uma sequência belíssima, em que ele e ela (é assim que aparecem as personagens nos créditos finais, sem nome) se entregam aos prazeres da carne, descurando, ou simplesmente não se apercebendo do despertar do petiz. Filmada num preto e branco sublime, em câmara lenta e acompanhada pela peça “Lascia ch’io pianga” da ópera “Rinaldo” de Georg Friedrich Händel, que lhe reforça o tom sublime e simultâneamente trágico da premissa. Este prólogo, pela sua qualidade estética e intensidade dramática, funciona quase como uma curta metragem, pois está aqui a base daquilo que Von Trier quer explanar durante o resto do filme.
O capítulo Um intitula-se Grief – Luto, e entra já na parte da tese que Von Trier nos quer impingir. Enquanto que ele vai conseguindo controlar a dor da perda, ela caí no círculo vicioso da auto-culpabilização. Já aqui, ele é a racionalização, ela é a fúria. E essa fúria vai desaguar invariavelmente no sexo, que ele rejeita após assumir a responsabilidade do tratamento dela. A partida para o Éden surge assim como tentativa de fuga deste círculo vicioso.
No Capitulo dois, Pain (Chaos Reigns) – Dor (Reina o Caos), A Natureza assume o papel principal. Tudo no Éden assume papel de personagem, e Von Trier mostra-nos o natural como horrendo e ameaçador. Aqui a Teologia assume um papel importante pois começamos a receber referências religiosas que, escolhidas tendencialmente, reforçam a conotação feminina da Natureza, espelhando-a na natureza do Feminino. Começamos aqui a perceber qual é o Anticristo do título. Não tem nada de sobrenatural, é apenas a mais divina das criações.
Em Despair (Gynocide) – Desespero (Ginocídio), o terceiro capítulo, o filme assume definitivamente contornos de terror psicológico e físico. Não pela Natureza em si, mas pela sua personificação. Aqui é o desespero o detonador desse mal e as imagens que ilustram essa maldade são de difícil visualização. Von Trier ultrapassa os limites do tolerável, nunca perdendo de vista o seu objecto de estudo, o que acaba por justificar a crueldade.
The Three Beggras – Os Três Pedintes (título do quarto capítulo), são-nos apresentados como Dor, Desespero e Luto (os três capítulos anteriores), e personificados por um veado, uma raposa e um corvo. Surgiram à vez nos capítulos anteriores, mas aqui juntam-se porque, como ela lhe diz, ‘a chegada dos pedintes anuncia a morte de alguém’. Estamos avisados. Mais uma vez, as referências literárias (no campo da Teologia) assumem aqui um papel fundamental, deturpado por Von Trier com grande sagacidade.
No Epílogo, voltam o preto-e-branco, a câmara-lenta e Hendel, aqui ilustrando uma paz ilusória e uma ironia cortante no reforçar de uma tese que é tão válida e discutível como qualquer outra.
“Anticristo” é um filme intenso, desafiador, provocante e absolutamente indispensável para todos aqueles que gostam de ver cinema com entrelinhas, que nos desafia a pensar, nos excita e repugna, enchendo os sentidos com imagens e sons pragmáticos mas nunca definitivos. É difícil de ver sim (eu próprio desviei o olhar do ecrã um par de vezes), mas se não nos desafiasse e agredisse, não seria tão compensador.
Tecnicamente, é um filme imenso, com uma realização segura e pragmática de Von Trier, que dirige os elementos com mestria e um olhar ideológico e tendencioso.A sua obsessão pelo tema é tal que se fez rodear de colaboradores que pesquisaram temas como Misoginia, Mitologia e Maldade, Ansiedade, Filmes de Terror, Música e Teologia, bem como de um consultor e um técnico de terapia.
A fotografia de Anthony Dod Mantle ( o mesmo de “Slumdog Millionaire“) é absolutamente fabulosa, quer nos enquadramentos ou na iluminação, produzindo imagens de grande beleza estética e profundidade emocional, tanto no preto-e-branco como a cores. Em termos técnicos, realço também o som de Kristian Eidnes Andersen, que cria ambientes ora relaxantes ora aterradores, complementando muitas vezes as imagens com uma segunda leitura, que apetece acompanhar.
E, por último, os actores. Uma das desagradáveis surpresas da temporada de prémios referente ao ano passado, foi a não nomeação de Charlotte Gainsbourg para o Globo de Ouro e Óscar de melhor actriz, depois de ter conquistado merecidamente esse prémio em Cannes. A sua interpretação em “Anticristo” é das mais intensas, assustadoras e angustiantes, de que tenho memória. Desde Kathy Bates em “Misery” que nenhuma mulher tinha ousado ir tão longe, personificando a maldade do ser humano de forma tão arrebatadora. Claro que ajuda ter Willem Dafoe como contraponto, num personagem que já lhe fazia falta, para nos relembrar o grande actor que é. O melhor elogio que posso fazer das suas interpretações é dizer que quase não se nota serem os únicos actores neste filme, tal é a profundidade narrativa e emocional que põem nas personagens.
Resumindo, “Antichrist” é um filme que se ama ou se odeia. Von Trier não deixa aqui espaço para meios-termos. A sua declaração em Cannes, de que é o melhor realizador do mundo, pode ser narcisista e discutível, mas não sou eu que o vou contrariar. Este é um filme que enche as medidas, seja para ficarmos até ao fim ou para abandonarmos a sala o quanto antes. Filmes que mexem connosco desta forma não há muitos. E só isso já vale muito.
Classificação: 5/5
Deixo-vos com o prólogo completo do filme. A imagem não está nas proporções correctas, mas dá para ter uma ideia. Nada do que está no prólogo (ou no meu texto acima) estraga a experiência de ver o filme.
Um último aviso: O vídeo abaixo contém uma cena de sexo explícito, pelo que só deve ser visto por pessoas maiores de 18 anos e não facilmente impressionáveis.
Eu adorei também! Excelente filme, para mim um dos melhores do ano e o meu preferido de Lars von Trier. Parabéns pela crítica!
Obrigado Tiago!
Eu gostei do filme! Achei-o perturbador tanto fisicamente como psicologicamente!
Abraço
Cinema as my World
Muito obrigado Nekas, pelo duo-centésimo comentário aqui no laxanteCULTURAL. Abraço.
Um filme que realmente não vale a pena assistir, tava quase desistindo de assisti-lo lá pela metade, mas decidi assistir na esperança de ser surpreendida por uma trama inteligente, mas infelizmente constatei que era um filme chatíssimo. Diálogos pobres, sem profundidade, não vi intensidade alguma, um filme bem superficial, só me causou tédio.
Roberta, como eu disse na crítica, “Anticristo” é um filme que se ama ou se odeia. São válidos os argumentos para ambos os casos e gostos não se discutem. Contudo, dizer que o filme é superficial, com diálogos pobres e sem profundidade e sem intensidade, faz-me um bocado de confusão… Será que estavas com a disposição certa para o ver?
Renata, eu também não gostei. Quando terminei de assistir fui atrás de informações sobre roteiro e tal, mas fiquei mais puto ainda. O Lars Von Trier assumiu publicamente que foi um filme feito em cima de umas idéias de cena que ele achou que ficariam bacanas em um filme. Isso ele fez bem, as cenas são lindas, a fotografia é bacana e a atenção aos detalhes deixa tudo magnífico, mas por Deus, que história babaca e sem sentido.
Oi Pedro Afonso, realmente foi o que eu achei do filme, achei fraco.
Gostei, ela se envolveu muito na tese e ficou psiquicamente abalada, a morte do filho foi a gota d’agua. Enloqueceu de vez e canalizou a revanche para o marido analista incompetente .
Imagens belissimas, o menino caindo e a neve é deslumbrante, que lembrou a neve caindo dentro da igreja sem teto do filme “Europa”. As imagens são o ponto alto do filme como provam as inseridas acima.
É isso: ama-se ou odeia-se. Eu amei. Não esquecer que o filme é dedicado a Andrei Tarkovsky. Isso diz muita coisa sobre o filme.
Intenso e profundo, sem dúvida belissimo.
Confesso que já não há realizadores ousados, que misturem temas sensiveis como estes, explorando cada um deles de forma arrebatadora sem cair no execesso e ridiculo.
Um filme que de facto não deixa margem para meio termos, ou se ama ou se odeia.
Na minha opinião foi dos melhores trabalhos cinematográficos que já vi!
De parabéns, todo o elenco.
Horrível rs sorry mas esse filme é péssimo, como todos os outros filmes de Von trier, não sei o que ele tenta passar mas a realidade é que é muito muito ruim, gosto é gosto mas ruim de
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