10 Anos / 20 Escolhas #10 – 2018.

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Para terminar a iniciativa de comemoração do 10º aniversário do laxanteCULTURAL, temos o amável contributo da Rita Santos, a.k.a. FilmPuff, do Not a Film Critic. A Rita é outra das bloquers que só conheço das redes sociais, e do trabalho que faz no seu blogue. Tem a particularidade de, como eu, ter preferência pelo cinema de terror, e sigo o MotelX através da sua cobertura, uma das mais completas do festival . Muito activa no Twitter, é a responsável por eu ainda não ter deixado a plataforma de vez. Obrigado, Rita, pelo teu contributo para esta iniciativa.

A escolha da Rita Santos – “Hereditary” de Ari Aster.

Quando fazem as eternas perguntas: “de que filmes é que mais gostas?” ou “que filmes é que gostaste mais de ver mais recentemente?”, costuma ser uma dor de cabeça dar uma resposta ou sequer uma resposta fiável dado que o “gosto” é subjetivo e mutável. O que adorava há uns dez anos, hoje em dia, posso observar com maior cinismo e até já nem adorar de todo. Por outro lado, tenho sempre o sentimento de que me é mais fácil indicar o que odiei com um daqueles ódios apaixonados mas que, infelizmente, tantos anos depois, me levam a olhar para os textos que escrevi na altura e sentir vergonha por ter sido tão dura ou estar tão enganada. Pois então, ainda bem que 1) fui convidada pelo laxanteCULTURAL a indicar um filme de que gostasse particularmente e 2) este se referisse ao ano de 2018, que a memória ainda é fresca e tenho uns bons anos até mudar de ideias (se é que tal irá acontecer de todo).

Em 2018 não me recordo de muitos filmes que me tenham impressionado mas os o que o fizeram deixaram uma marca tão visível que estou em crer que o revisionismo histórico nos fará olhar para esse ano pela qualidade da oferta. “Hereditary”, “Annihilation” ou “One cut of the dead” são algumas das propostas que me vêm à mente. “Hereditary” com um elenco insuperável, liderado pela suprema Toni Colette (aka merecia todos os prémios de representação existentes); “Annihilation” por navegar caminhos do scifi perturbadores e originais na linha de “Under the Skin” (um filmaço de 2013) e o japonês “One Cut of the Dead” uma carta de amor ao cinema que até já vai a caminho do remake ocidental mas tem ainda um longo caminho a percorrer até ser compreendida a sua excepcionalidade.

A minha preferência recai sobre “Hereditary” um drama familiar de terror que subverte as expectativas iniciais. Prefiro sempre referir-me a “Hereditary” como um drama e só depois como um filme de terror. Confesso ter um gostinho especial pela malta-pipoca que foi ao cinema ver o filme esperando jump scares e espectros a cada dois minutos e tiveram de aguentar um “slow burn” dilacerante. Em “Hereditary” Annie Graham uma miniaturista fria e organizada – as suas figuras revelam um detalhe e precisão que leva a pensar se ela não preferia que a sua vida fosse mais aquilo que constrói na sua cabeça – que assiste ao descarrilar da sua vida perfeita a partir do momento da morte da mãe. Não porque esta fosse uma mãe extremosa como ela aliás faz questão de admitir em diversas ocasiões mas porque esse momento coloca em acção uma série de acontecimentos, cada um mais trágico que o anterior, incluindo a morte de uma pessoa que a marca tão visceralmente que leva a própria e todos os que a rodeiam a questionar-se se a sua sanidade não terá sido também ceifada em conjunto com aquela vida.

“Hereditary” é uma aposta arriscada. Os acontecimentos não sucedem “como deviam”. Ari Aster, o realizador e argumentista atreve-se a escrever uma cena que muitos realizadores nunca se iriam atrever a escrever e que se revela a mais perturbadora, dilacerante e aterradora do ano. É porventura mais assustadora do que a do ataque do urso de “Annihilation”. A cena tem pânico, horror crescente, surpresa, comoção, por fim a calma da realização e funciona porque não existe nenhuma intrusão artificial. Desenrola-se sob a forma de um acidente que podia acontecer a qualquer um tendo consequências bem reais. Depois, temos personagens muito bem delineadas e que no entanto, não correspondem às expetativas mais fantasiosas e cor-de-rosa dos espectadores. Não, Annie não é uma mãe perfeita, possivelmente não bate com o baralho todo, é até antipática não correspondendo, lá está, à vítima perfeita que é digna de piedade e se recolhe dentro de si própria para vir um salvador qualquer dizer-lhe que está tudo bem. Ela é a sua salvadora e vilã em simultâneo. E quando pensamos que já percebemos a estranha criatura que é “Hereditary”, Aster volta a baralhar as cartas para um final que se não inesperado pelo menos foge aos desenlaces românticos de Hollywood.

“Hereditary” não terá sido o filme mais divisivo que saiu em 2018 mas recordo-me dos argumentos carregados de paixão na sua defesa ou ataque. O final é com toda a certeza o maior ponto de discórdia mas, pela minha parte, não destrói o caminho exemplar, desenhado desde os instantes iniciais em que a câmara incide sobre a miniatura de uma casa num zoom progressivo até se transformar no quarto de dormir de um dos personagens o qual descansa ainda sereno, que representa a calma antes da inquietação que despontará rápida, furiosa e tão cedo não sairá das nossas cabeças.

A minha escolha – “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri” de Martin McDonagh.

Curiosamente, este é um filme de 2017, mas que estreou apenas em Janeiro de 2018 em Portugal, sendo portanto elegível para finalizar as minhas escolhas dos últimos 10 anos. Na lista de onde este saiu estavam filmes como “A Quiet Place“, “First Reformed“, “Thelma“, “Shoplifters” ou até “The Shape Of Water“, mas o filme de Martin McDonagh tem um lugar muito especial no meu coração. Vou tentar explicar porquê.

Uma mulher cuja filha foi assassinada há quase um ano, e que já não tem novidades da investigação há vários meses, decide provocatoriamente alugar 3 cartazes numa estrada rural, tentando chamar a atenção da polícia para a investigação. A provocação acende os animos e vários conflitos vão deflagrar na pequena cidade.

Parece uma estória muito simples, mas estamos a falar de McDonagh, o mesmo do magnífico “In Bruges” e do desequilibrado “Seven Psychopats“, que começou a carreira ganhando um òscar de melhor curta-metragem com “Six Shooter“. Quem viu os filmes anteriores (eu vi os três) sabia o que esperar: situações inusitadas, diálogos rápidos, irónicos e com duplo significado, personagens desajustadas e bastante violência. O que aqui impressiona é o facto deste ser o filme mais humano de McDonagh. E mais maduro também. Aborda-se o luto, o desespero, a perda, a integração, a misericórdia e até a bondade ou falta dela, mantendo todos os elementos dos filmes anteriores.

Não é que nesses filmes também não existissem alguns desses elementos, mas aqui deixam de ser fait-divers para serem o centro da narrativa. Há um tom mais preciso na abordagem, um controle exímio do ritmo (algo que em “Seven Psychopats” era descontrolado e prejudicial para o filme), um magistral trabalho de fotografia suportado na narrativa (com uma extrema atenção ao pormenor mostrado, complementando o discurso) mas, sobretudo, uma beleza contagiante que deriva da tal humanidade que transpira do argumento. Há uma verdade crua que nos aproxima da estória e dos personagens, há uma empatia inerente e inevitável pela facilidade de identificação com os mesmos, algo mais difícil de conseguir nos títulos anteriores.

Talvez seja só pelo facto de já não serem assassinos e psicopatas os protagonistas, mas pessoas normais, como nós, com empregos e rotinas e família, etc. Pela primeira vez na obra de McDonagh, depois de “Six Shooter”, isto podia acontecer a qualquer um de nós. E essa identificação faz com que McDonagh, não menosprezando o seu estilo, nos possa tocar como nunca o fez antes. Há momentos tão subtis quanto bonitos e tocantes, há ternura nos surtos violentos dos personagens, há raiva nos apaziaguamentos, o duplo sentimento salta dos diálogos para as emoções.

Claro que tudo isto tem de assentar no magnífico trabalho dos actores, não só os principais, Frances McDormand, Sam Rockwell e Woody Harrelson, mas também no excelente elenco que os complementa: Abbie Cornish, Caleb Landry Jones, Lucas Hedges, Zeljko Ivanek, Peter Dinklage ou John Hawkes. Não há, em todo o filme, uma fala mal entregue, um olhar desadequado, uma momentânea quebra de personagem, nada. Nota-se um cuidado extra de McDonagh, na entrega da narrativa aos actores. Só para dar um exemplo claro disto, menciono a cena em que o personagem de Rockwell vai parar ao hospital e fica no mesmo quarto que o personagem de Jones, sem que este identificasse imediatamente o homem que o tinha agredido e colocado lá. Quando isso acontece, a cena é tão simples e tão complexa ao mesmo tempo, o arco dos personagens (principalmente do de Rockwell) dá um salto gigantesco, que mexe connosco enquanto espectadores e nos aproxima da estória e dos personagens.

Concluindo, “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri” é um filme tremendo, na humanidade, na pormenorização, na concretização e no que fica em nós depois dele. Dele emana uma perfeição etérea. Não há um segundo que esteja a mais nem outro de que sintamos falta. Mesmo a sua conclusão, aberta a interpretações, é perfeita. Depois do percalço de “Seven Psychopaths”, McDonagh volta a afirmar-se como um dos mais consistentes, inventivos e pragmáticos contadores de estórias bizarras da actualidade. Mas, neste caso, a estória nem é tão bizarra quanto isso…

Classificação: 4.5/5

 

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