“Midnight Mass” – A Doutrina De Mike Flanagan.

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Mike Flanagan. Quem conhece este espaço sabe a admiração que tenho por ele, que considero o melhor realizador da actualidade no género do terror, e talvez até na generalidade. É também um dos mais produtivos, desde 2016 que lança pelo menos um projecto por ano, o que é surpreendente dada a natureza e qualidade desses mesmos projectos. Tive oportunidade de assistir a um visionamento restrito dos dois primeiros episódios de “Midnight Mass” uns dias antes da estreia, seguido de uma esclarecedora (q.b.) sessão de perguntas e respostas via zoom, com Flanagan e o produtor e seu sócio na Intrepid Pictures, Trevor Macy. Depois da estreia já vi a série na totalidade duas vezes e perdi a conta aos visionamentos de clips e reaction videos depois disso. Tudo porque “Midnight Mass” é talvez o mais fascinante (e pessoal) projecto de Flanagan.

Riley Flynn, um jovem empreendedor que acaba de cumprir 4 anos de prisão por matar uma jovem enquanto conduzia embriagado, regressa à sua pequena comunidade ilhoa, no mesmo dia em que um jovem e carismático padre vem substituir o anterior, muito venerado nesta (muito) religiosa paróquia. Uma sucessão de acontecimentos estranhos e miraculosos vão revelar uma ameaça à estabilidade e continuidade da pequena e isolada cidade piscatória.

“Midnight Mass” é um projecto antigo de Flanagan, que começou por abordá-lo em forma de romance, e só mais tarde em forma de guião, demasiado extenso para um filme, antes de ser adaptado para o seu formato final. Pequeno pormenor interessante é o facto do livro (que nunca foi publicado, trata-se de um adereço criado propositadamente) ter aparecido em dois projectos anteriores de Flanagan. Em “Hush” era o romance publicado pela personagem principal, que o tinha emprestado a uma amiga. Há inclusivamente um diálogo entre as duas em que são referidas as personagens de Riley e Erin. Em “Gerald’s Game“, é um dos objectos que está na prateleira sobre a cama onde Carla Gugino está algemada. Gugino tem também uma fugaz participação off-screen em “Midnight Mass”, é a voz da juíza que sentencia Riley nos minutos iniciais.

Antes de mais, “Midnight Mass” é terror puro e duro, a abordagem de Flanagan a um dos subgéneros mais antigos e venerados do Horror, anterior ao próprio cinema. Mas, devido à narrativa densa mas ponderada, muito ao estilo do realizador, a ‘ameaça’ só é totalmente revelada no terceiro episódio, e apesar das pistas que vao sendo dadas desde o ínicio, é uma surpresa que eu não quero estragar. Felizmente, “Midnight Mass” é muito mais do que o seu elemento de génro e, sobre isso, temos muito sobre o que falar.

“Minight Mass” é uma reflexão sobre a religião, nomeadamente a católica, feita por alguém que foi criado na fé, tendo mesmo sido acólito, mas que actualmente é ateu. E se, à partida, pudessemos achar que a série seria um ataque à religião e à fé, nada aqui é assim tão gratuito. Flanagan aborda o tema com um considerável respeito e honestidade, mesmo que tudo o que de mal (e também de bom) acontece aqui venha da relação destas personagens com a (sua) fé. E, nesse sentido, há aqui todo o tipo de relações. Há a personagem que perdeu a a fé e procura redenção. Há aquela que não se acha digna da fé. Há aquela que tem outro tipo de fé e tem de manter uma relação saudável com o resto da comunidade. Há aquela que acha que a sua fé é tal que a coloca acima de todas as outras, mais próxima de Deus, e com um poder e autoridade que realmente não tem. E há tantas outras, com relações mais ou menos saudáveis, mais ou menos práticas, com a sua (e a dos outros) religiosidade.

E depois há o Padre Paul, o suposto farol moral da comunidade, mas que concentra em si várias contradições e mistérios. Não é possível falar muito da personagem sem desvendar alguns dos twists da estória, no entanto podemos referir que, sendo o ponto de contacto entre a comunidade e a palavra (e o corpo e sangue) de Deus, aquele de quem se espera sabedoria e orientação seja inocente a ponto de, apesar das melhores intenções, colocar toda a comunidade em perigo. E é esse (des)equilibrio entre intenção e causalidade, Mal ou Bem, autoridade e subserviência, acusação ou perdão, etc. que torna “Midnight Mass” um produto tão fascinante. É nas entrelinhas que se encontram as respostas, aqui, na ficção, como na vida.

Sim, “Midnight Mass” é provavelmente o melhor trabalho de Flanagan até agora (embora pessoalmente eu prefira “The Haunting Of Hill House“), e a prova definitiva de que o homem precisa de tempo para desenvolver uma narrativa, apresentar um ponto de vista não forçado, colocar estratégicamente os elementos de género, surpreender-nos com a sua intricada teia de personagens, situações e sentimentos que nunca nos deixam indiferentes. E será o melhor porque é porventura o mais seguro. Talvez seja porque esteve 10 anos em preparação e evolução. Ou talvez porque trate de temas tão próximos do realizador, seja na questão dramática ou de género. Ou porque Flanagan está muito próximo da perfeição naquele equilibrio que faz entre drama e terror. Basta olharmos para o que de mais se faz no género para percebermos que ninguém trabalha a componente dramática tão bem quanto ele, o que resulta sempre em peças arrebatadoras, até para os espectadores que geralmente não se dão bem com o terror.

E não é segredo nenhum, Flanagan já explicou o seu método em muitas entrevistas e voltou a fazê-lo no referido Q+A a que assisti: quando a primeira versão do guião está completa, Flanagan retira-lhe todos os elementos de género e verifica se a estrutura dramática funciona sozinha. Só quando isso acontece é que os elementos de género voltam a ser inseridos, criando a estrutura final. E é fácil perceber o porquê e os resultados que isso têm no trabalho de Flanagan. Quando criam um produto de um determinado género, a maioria dos argumentistas e realizadores está focado nesses mesmos elementos. Os efeitos, os jump-scares, a caracterização ou o gore acabam por ser o centro das atenções, negligenciando a componente dramática, que acaba por ser o que liga sentimentalmente o espectador ao projecto. Em todas as obras de Flanagan (e só recentemente vi o seu primeiro filme “Absentia” e já lá está também) a afinidade do espectador com as personagens e os acontecimentos nunca é negligenciada, é aliás o ponto central de toda esta relação criativa.

E depois há a mestria da concretização. Flanagan, à semelhança do que aconteceu em “The Haunting Of Hill House” assume aqui a realização de todos os episódios, além da escrita, produção e montagem. e há um rigor milimétrico em todos os aspectos da produção. A fotografia de Michael Fimognari, habitual colaborador de Flanagan desde “Oculus” é excepcional, quer nos enquadramentos quer na iluminação e correcção de cor. Há duas sequências que merecem referência. Uma é o plano-sequência que abre o episódio 2. São sete minutos e meio sem interrupção, em que a câmara percorre a extenção de uma praia, passando por várias personagens e cruzando as suas opiniões e perspectivas sobre o que está na própria praia. Faz lembrar imediatamente o episódio 6 de Hill House, com os seus 4 longos e envolventes planos-sequência (também da autoria de Fimognari). A segunda sequência é a primeira reunião dos AA, entre o Padre Paul e Riley, na sociedade recreativa. Estão sentados em duas cadeiras, um em frente ao outro, no centro do espaço, e todo o longo diálogo é mostrado em planos e contra-planos entre as duas personagens. O que salta à vista e nos puxa para dentro daquele diálogo são os (des)enquadramentos desses dois planos. Ao contrário do que geralmente acontece, estão os dois descentados no ecrã, deixando um espaço vazio enorme no enquadramento. Embora subliminar, isto cria um desconforto no espectador, e aproxima-o de forma inconsciente do desconforto que sentem as personagens. Não me lembro de ter visto em mais nada, este tipo de execução focado na objectividade e intenção de manter o espectador focado numa cena geralmente banal.

O trabalho de som, com supervisão de Trevor Gates, outro habitual colaborador de Flanagan, é magnifico, e assume aqui um papel particularmente interessante. No final dos episódios, aquilo que geralmente acontece é rolar os créditos sob música. Aqui, o ecrã fica negro e os créditos rolam com o som ambiente da cena a que estávamos a assistir. Isto parece um pormenor sem importância, mas o efeito que tem, de prolongar a emoção de uma imagem que não estamos a ver, é particularmente eficaz em alguns episódios, nomeadamente o 5º, em que o choque do espectador se mantém para além do seu tempo útil. Mais uma vez, propósito e intenção numa execução impar. Em relação ao som, devemos mencionar também os The Newton Brothers, que criaram uma banda sonora aparentemente menos impactante que nas colaborações anteriores com Flanagan, mas muito mais profunda e subliminar. Não só nas peças musicais em si, mas também nos cânticos religiosos que pontuam toda a narrativa, e que foram escritos e adaptados pelos próprios, com pormenores nas letras e nos sons que são tão subliminares quando enriquecedores. E Flanagan foi também um dos elementos do coro em todos os cânticos produzidos para a série. Vou referir apenas mais um elemento técnico, para não ser maçador: a produção artística. Toda esta comunidade foi construída de raíz no Canadá, e tudo o que aparece nestas imagens parece que sempre lá esteve. E temos até direito a um pequeno pormenor ‘meta’: no palco da sociedade recreativa está, parcialmente coberto por um pano escuro, o espelho de “Oculus”. Mais um pormenor subliminar que dá unidade e consistência à obra de Flanagan, criando quase um ‘flanaguniverse’. Uma curiosidade: este foi um dos primeiros projectos a voltar à produção depois da paragem por causa da pandemia, e é espantoso olhar para a segunda metade do episódio 6, por exemplo, e imaginar a logistica necessária para filmar aquela cena de 25 minutos com todos os protocolos de segurança pandémica em execução.

E falta-me apenas falar no aspecto mais visível e marcante desta produção: o magnifico elenco. Das caras já conhecidas do universo Flanagan temos Kate Siegel, Samantha Sloyan, Rahul Kohli, Annabeth Gish, Alex Essoe, Michael Trucco, Henry Thomas e Robert Longstreet, a que se juntam Zach Gilford, Kristin Lehman, Igby Rigney, Annarah Cymone, Rahul Abburi, Matt Biedel e Hamish Linklater. Todos têm prestações imaculadas cheias de intensidade e pormenores que dão consistência às suas interpretações, mas tenho de destacar alguns. Samantha Sloyan. Se houvesse justiça, Sloyan não seria nomeada para prémio algum, ele ser-lhe-ia entregue directamente sem ter de passar por esse circo mediático. O que esta mulher faz com a personagem de Bev Keane é, no mínimo, brilhante. Não há um unico plano em que apareça que não não apeteça ao espectador espetar-lhe uma galheta. A prepotência, o despeito, a sobranceria com que a sua personagem se relaciona com as outras é das coisas mais abjectas que já vimos em ficção. A sua personagem tem a mesma motivação que a personagem de Marcia Gay Harden em “The Mist“, a religiosa fanática que acha que Deus a escolheu porque sabe a biblía de cor e isso lhe dá algum tipo de poder sobre os outros. Só que enquanto Harden tinha uma abordagem agressiva à personagem, Sloyan tem uma abordagem passivo-agressiva, o que lhe confere ainda mais animosidade, intenção e até realismo. É daqueles casos em que tudo o que conhecemos dela desaparece dentro da personagem, metamorfeia-se em Keane e torna as nossas emoções pela personagem muito mais reais. Hamish Linklater é fabuloso enquanto Padre Paul. São dele todos os grandes monólogos da série, em homilias que vão crescendo de intensidade e propósito. Consegue personificar num só todos os padres que conhecemos. A sua contenção, o seu discurso apaziguador ou moralista, a sua (falsa) segurança, mas principalmente a sua humanidade são transmitidos de forma tão segura e objectiva que é impossível não acreditarmos nas suas palavras. E Robert Longstreet, imenso nos pormenores. É espantoso que numa personagem com pouca dimensão Longstreet roube todas as cenas em que aparece. É impossível desviarmos o olhar dele, e numa cena chave em que apenas reage a Annarah Cymone leva-nos às lágrimas. É intenso e intensional no olhar, nos movimentos, na expressão. É outro que merecia um prémio directo.

A maior crítica que tenho visto a “Midnight Mass” é ter demasiado texto. As personagens falam muito, em longos monólogos que deveriam ser diálogos. Talvez por adorar ver actores trabalhar, adoro isso na série, mas principalmente acho que lhe dá ponderação, torna o ritmo mais pausado e dá profundidade e dimensão às personagens. E, principalmente, é uma característica deste tipo de locais, comunidades pequenas em que não há muito para fazer e não há pressa. Quando um fala, o outro ouve, é simples. A única crítica com que concordo, é que nos episódios iniciais alguns actores usam caracterização para lhes dar uma idade mais avançada, e num caso ou noutro essa caracterização é evidente. Por questões que se prendem com aspectos da estória que não posso esmiuçar, isso é uma inevitabilidade, mas apesar de distrair um pouco no inicío, não acho que prejudique a visualização ou retire qualidade ao projecto. Esta é a melhor série do ano e um dos melhores trabalhos de Flanagan, que deveria ter a atenção e o realce que merece, mesmo por parte de quem geralmente não se interessa por terror. Há aqui do melhor drama que temos visto. E, felizmente, o homem não pára e a sua próxima série para a Netflix já concluiu as gravações. Chama-se “The Midnight Club“, estreia no próximo ano, e apesar de ter grande parte do elenco das anteriores, não tem qualquer relação com as mesmas. Além disso, Flanagan está já em pré-produção do projecto seguinte, “The Fall of the House of Usher“, baseado na obra de Edgar Allan Poe, a estrear também na Netflix em 2023. Mas “Midnight Mass” está aí (e todos os projectos anteriores de Flanagan) e merece ser vista e debatida. Pela sua objectividade, qualidade e revelância técnica, artística e até social.

Classificação: ★★★★★

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