“Balada Para Sophie” – O Opus Maximus de Melo e Cavia.

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Balada Para Sophie“, de Filipe Melo e Juan Cavia, já fez 6 meses. Curiosamente, ou talvez não, nunca demorei tanto tempo a digerir um livro como aconteceu agora com este. Foi o tempo necessário (ajudado por alguma procrastinação) para que o deslumbramento passasse. Sendo fã do trabalho da dupla (e amigo do Filipe), sabia que “Balada Para Sophie” seria um livro especial, mas tenho de admitir que não pensei que o fosse tanto. Não porque a dupla não tenha dado já provas suficientes do quão admiráveis, tocantes e sinceras são as suas obras, mas porque o amadurecimento artístico e técnico aqui demonstrado costuma demorar décadas a atingir. Além disso, é a primeira das suas obras impossível de ler de um só fôlego, tal é a quantidade de informação que é necessário assimilar. Mas vamos ao que interessa…

“Balada Para Sophie” percorre 7 décadas da vida de Julian Dubois, um celebrado pianista, e da sua rivalidade artística e pessoal com François Samson, que considera um dos melhores pianistas de sempre. Ao longo de uma extensa entrevista a Adeline Jourdain, Julian vai desfiando memórias mais ou menos claras da sua vida, dos momentos mais dificéis ao sucesso mais retumbante. Mas é Adeline que tem um segredo que dará sentido à sua existência.

Sabemos da ligação profunda que a dupla tem com o cinema. O Filipe assume-o como a sua grande paixão (e que os momentos em que se sentiu mais feliz e realizado foi quando realizou) e Cavia tem créditos na direcção artística de muitos filmes, entre eles o belíssimo e oscarizado “El Secreto De Sus Ojos“. E é por isso que os seus livros em conjunto sempre me pareceram mais objectos cinematográficos do que apenas e só imagens estáticas que compoem uma narrativa. As duas imagens anteriores são um magnífico exemplo disso. A sensação de movimento entre quadros, a passagem do tempo com as mudanças de luz ou a sequência de planos, em que conseguimos imaginar com clareza (mesmo inconscientemente) todos os frames que existem entre eles. Em “Balada Para Sophie” há um salto enorme na depuração técnica e artística de Cavia para servir o magnífico (e extenso e complexo) guião do Filipe.

E sabemos que isso foi um trabalho conjunto. Há no guião (e vou continuar a chamar-lhe guião porque é nessa forma que o Filipe escreve e para continuar a afirmar que este é um objecto cinematográfico) espaço para o Juan criar quadros que dão enorme fluidez à narrativa, além de a servir com pormenores deliciosos e enriquecedores. Não há aqui qualquer tipo de preguiça ou medo de sobrecarregar a estória com pormenores supérfulos, e o resultado disso é que esta é uma narrativa densa e rica, mas que nunca perde de vista o que é fundamental para contar a estória. Claro que isto torna o livro pesado (literalmente), mas ao mesmo tempo tão recompensador. E essa recompensa vem do facto de, durante 90% do livro e recorrendo a estes ‘truques’ que mencionei, o Filipe e o Juan esconderem a mão. Ou seja, envolvem-nos de tal forma na narrativa que nos deixam à sua mercê, para nos tirarem o tapete e nos atingirem fundo nas entranhas, com um twist que, mesmo estando à vista desde o momento em que o livro nos chega às mãos, nos atinge emocionalmente em cheio.

Mais do que qualquer coisa, o Filipe escreve aqui sobre o sentido da vida. E seria fácil fazer um paralelismo entre os dois pianistas da estória e o Filipe Melo, ele próprio um dos nossos melhores músicos e compositores da actualidade. Embora seja claro que o Filipe tenha feito uma reflexão sobre o sucesso, o trabalho e temáticas afins, é redutor pensar que “Balada Para Sophie” é só isso. É sobre a vida, o amor, a amizade, o sucesso e o fracasso e tudo o que faz de nós seres humanos. E isto é obviamente suportado por uma galeria de personagens riquissima e um equilibrio exemplar entre humor e tragédia. E outro equilibrio interessante tem a ver com o facto da estória ter um pé na história do século XX e o outro na fantasia, suportado no pormenor de Julien Dubois padecer de demência. É tudo tão bem escrito que me deixa a pensar no fabuloso e árduo trabalho de composição que está por trás (e que certamente foi também um pouco de Cavia).

Gráficamente, o Juan acompanha as mudanças de tom (e de época) da estória numa variedade de estilos e paletas cromáticas que nunca nos deixa sem saber onde e quando estamos. Dos tons sombrios da Segunda Guerra Mundial, aos claros da actualidade, dos coloridos vibrantes do bem sucedido Dubois ao traço sépia dos seus momentos de intimidade, aquilo que pareceria uma salgalhada gráfica torna-se coesa porque é apoiada na narrativa (e apoia-a). O seu desenho objectivo e descritivo tem aqui o seu momento mais apurado e significativo. Eu sempre gostei do que ele fez nas obras anteriores, mas há aqui um amadurecimento colaborativo digno de nota.

De realçar também o apontamento de Santiago Villa na página dupla reproduzida acima (e na página que as precede), a reactivar o trio responsável pelos vários volumes das aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy. É um trabalho denso, estimulante e até hipnótico, mas ilustração fundamentalmente descritiva para o momento da estória em que se encontra.

Outro pormenor curioso, é o facto do Filipe Melo ter composto um tema musical para o livro, precisamento o que dá título ao mesmo. O tema está no livro sob a forma de uma partitura, para que todos que saibam ler e tocar música o possam fazer. Para os outros, peçam a alguém que o faça ou ouçam o próprio Filipe a tocá-lo na apresentação do livro na Fnac de Santa Catarina, no fim deste artigo.

Já o disse, Melo e Cavia atingem aqui uma maturidade narrativa e artística que muitos demoram várias décadas a atingir. Este é um trabalho técnico e artístico que deveria ser obrigatório estudar em qualquer escola, no sentido de fomentar a criatividade de contar estórias que tenham conteúdo e significado. Não é gratuito (como nada do que a dupla faz é) que “Balada Para Sophie” seja dedicado à malograda Beatriz Lebre. É uma chamada de atenção, é um grito de raiva, é uma tentativa de entender o sentido da puta da vida, que é também o que “Balada Para Sophie” é.

Classificação: ★★★★★

O vídeo foi gravado por mim. Peço desculpa pela falta de cerca de 30 segundos iniciais, mas dá para terem uma idéia do que é esta maravilha.

2 comentários em ““Balada Para Sophie” – O Opus Maximus de Melo e Cavia.”

  1. Obrigada pela viagem.. Fiquei ansiosa por ter esse livro nas mãos e saborear cada palavra, cada imagem, ao som desta melodia tão… envolvente! Divino! ?

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  2. Grande análise e homenagem, a uma obra viva sobre a vida, foi também está a minha leitura e também só depois de ouvir a música da partitura consegui dar por concluída a leitura que é mais uma experiência de uma narrativa brilhante. Grande obra e grande, opus Maximus Balada para Sophie entrenha-se no coração.

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