“Shutter Island” – Magnifica Paranóia!

| Lido 9.125 vezes

Shutter Island“, de Martin Scorsese, é um pesadelo! E, como qualquer bom pesadelo que se preze, é fascinante. Hipnótico aliás. E, não sendo um pesadelo do espectador é vivido e recordado por este com uma tremenda proximidade. Fosse um sonho e facilmente se dispersava. Como bom pesadelo que é, entranha-se e fica em nós até muito depois de terminada a projecção. Muito, muito depois. Mas além disso é uma paranóia. Que nos deixa à beira do colapso, sem nada a que nos agarrar. E não pensem que ficamos reconfortados quando o filme termina… É aí que começa a paranóia. O que é que se passou? Ele era o quê afinal? Porque é que eu ainda deixo que o Scorsese me manipule assim?

E somos manipulados desde o primeiro minuto, sem que o percebamos. Tudo o que vemos acontecer, o filme que vemos desembrulhar na nossa frente, é completamente posto em causa em cada nova cena, como se a cada bifurcação, fosse sempre escolhido o caminho errado. Mesmo as sequências em flashback (atormentadoras, para o personagem e para nós), nos fazem supor uma realidade alternativa, um indiciar de algo que nos poderá ajudar a resolver o enigma. O que é fascinante em “Shutter Island” é que a esse enigma inicial se vão juntando mais, compondo um labirinto onde entramos mas de que dificilmente poderemos sair. E, depois de ver o filme duas vezes, eu ainda não saí.

O enigma inicial é simples. Em 1954, uma paciente desaparece de Shutter Island, uma prisão/manicómio ao estilo de Alcatraz, para os criminalmente loucos. Dois U.S. Marshals são enviados para a ilha para descobrirem o que aconteceu. Todo o começo do filme é brilhante. Scorsese expõe o problema de uma forma simples e provocatória e vai usando a câmara para nos conduzir nesta viagem com os dois homens, na descoberta de um lugar que é tudo menos pacifico, e a violência interior pode manifestar-se a qualquer momento. Há uma cena que é exemplo disso. Ao chegarem ao estabelecimento prisional, há um enorme portão, que atravessamos de jipe, exactamente como se estivéssemos a entrar no Parque Jurássico. E dei por mim a pensar se não haveria uma alternativa para pôr a câmara, um plano que não fosse tão decalcado e reconhecível. Mas é esse o propósito do filme. Por-nos em terrenos conhecidos, empurrar-nos para a frente, para depois apagar-nos a luz e deixar-nos desamparados. Numa das sequências mais intensas do filme, DiCaprio acende fósforo atrás de fósforo, numa metáfora perfeita do jogo em que Scorsese nos manipula. “Shutter Island” é um filme de suspense perfeito, goste-se ou não do seu desfecho ou do que provoca em nós.

Quando percebemos que o tal ponto de partida é um Macguffin, já não há nada a fazer. Estamos envolvidos na trama até aos ossos. O facto de partilharmos o ponto de vista com o protagonista, Teddy Daniels (magnifico DiCaprio), faz-nos duvidar de tudo, até de nós, como se fossemos nós a ter de resolver os mistérios do filme. Nunca foi tão incómoda a passividade do espectador. E é esse incómodo que ainda hoje tenho. Porque no final, ainda há mistérios por resolver. Ou será que não? Uma coisa é certa: ver o filme mais vezes em busca de respostas é escusado. O que Scorsese nos oferece é uma viagem, não um destino. Como aliás a vida. Um dos personagens faz a DiCaprio uma pergunta que é dirigida a nós espectadores: ‘Ainda não percebeste que és um rato num Labirinto?’

Tecnicamente, este filme é magistral. Scorsese atinge aqui um perfeccionismo acutilante, quer a nível da planificação, quer a nível de manipulação do espectador. Tudo conta. O magnifico desenho de produção de Dante Ferretti (habitual colaborador de Scorsese) é essencial no ambiente criado, invariavelmente claustrofóbico, e factor importantíssimo no nosso envolvimento na obra. A fotografia de Robert Richardson (habitual colaborador de Scorsese, Oliver Stone e Tarantino) é perfeita no encobrimento do nosso olhar, quer na colocação da câmara, quer na iluminação. Aliás, a iluminação é um factor importantíssimo. Nem sempre natural, pode ser uma ajuda para o espectador tentar descobrir o que é real ou fruto da imaginação.

O casting é fabuloso e eficiente. Não há ninguém que destoe daquilo que lhe era pedido. A começar por DiCaprio, que aqui tem uma das suas melhores interpretações. É um prazer ver a sua evolução como actor atingir o nível de perfeição que aqui consegue. Mark Ruffalo, Ben Kingsley, John Carroll Lynch, Ted Levine e Max von Sydow, estão seguros e são importantes no clima de suspeição que percorre todo o filme. E depois temos os loucos: Emily Mortimer, Patricia Clarkson, Jackie Earle Haley, Robin Bartlett e Elias Koteas (que infelizmente aparece apenas alguns segundos) ajudam a criar o denso clima psicológico que nos envolve e nos torna loucos também. E finalmente temos Michelle Williams, a mulher de Teddy, personagem cujo destino tem tanto de macabro como de enigmático. Seguramente que a excelência do elenco e a sua gestão foram um dos factores que levaram Scorsese a por em causa a sua eficácia como realizador. Os mestres também vacilam.

A fabulosa adaptação que Laeta Kalogridis fez do romance de Dennis Lehane (que se está a tornar um dos meus escritores adaptados ao cinema favoritos) deveria ser estudada em todas as escolas de cinema. E Scorsese. O homem não sabe fazer maus filmes, é um facto, mas nada nos prepara para aquilo que é “Shutter Island”. Uma obra maior numa filmografia de excepção e um sinal de maturidade do génio que duvida de si próprio e arrisca tanto, quando ninguém se atreveria a exigir-lhe isso. “Shutter Island” é um dos melhores filmes dos últimos tempos, e não fosse estrear nesta altura do ano, não duvidaria a apontá-lo como um dos nomeados para os próximos Óscares. Assim sendo, o reconhecimento tem de acontecer apenas por parte de quem gosta de bom cinema e aprecia a coragem e o atrevimento de alguém que não tem de dar provas de nada a ninguém, excepto a si próprio.

Classificação: 5/5

4 comentários em ““Shutter Island” – Magnifica Paranóia!”

    • Sim Mariana, e é essa a intenção de Scorsese. Mais do que dar respostas, formula perguntas e estimula-nos a pensar. O que aconteceu depende apenas de cada um de nós.
      Obrigado pelos teus comentários.

      Responder

Deixe um comentário