Confesso que estava com saudades de James Cameron. Para mim, é um dos melhores contadores de estórias da actualidade. Mas mais do que as estórias em si, a sua criatividade, o seu entusiasmo, a sua originalidade e a sua megalomania na forma de as contar já lhe garantiu um lugar na história da 7ª Arte. Há aventura, não só nas estórias, mas principalmente na forma de as transpôr para o ecrã e gravá-las no imaginário colectivo. Jim conhece os limites e é obsecado em ultrapassá-los. E o que é a História senão uma colecção de obsessões? Fez dois dos filmes (na realidade foi um, o outro foi o aperfeiçoamento) mais importantes para a forma como os efeitos especiais têm (ou deviam ter) lugar na forma de contar estórias: “O Abismo” e “Exterminador Implacável 2 – O dia Do Julgamento“. A cobra de água que apareceu no primeiro deu lugar ao T-1000 no segundo, e deixou espantados milhões de espectadores pelo mundo fora. O passo em frente anunciado para “Avatar” era pois aguardado com altíssimas expectativas.
Antes, vamos à estória. Estamos no ano de 2154. Jake Sully é um ex-fuzileiro paraplégico que é recrutado para uma missão em Pandora, lua do planeta de Polyphemus, onde uma tribo indígena dificulta a extracção de Unobtanium, mineral que pode resolver a crise de energia na terra. A sua missão é, através do seu Avatar (corpo sintético criado a partir de DNA humano e indígena) , ganhar a confiança dos Na’vi, convencê-los a abandonar o local e, enquanto isso, fornecer informações sobre eles aos militares, para o caso de não o conseguir. Em termos dramáticos, isto resulta num “Danças Com Lobos” futurista em que Cameron adiciona, à complexidade do protagonista, a dicotomia ‘Consciência ecológica global/Natureza destrutiva do homem’, voltando aos temas de “Exterminador” ou “O Abismo”. Não é original, mas é irrepreensivelmente contada de forma interessante, intensa e absorvente.
Para a criação de Pandora, Cameron contratou uma Cientista em Biologia, para fundamentar e documentar as ideias muito concretas e especificas que tinha detalhadamente desenhado. Ecossistema, fauna, flora, atmosfera, etc. foram cuidadosamente estudados, resultando numa enciclopédia de mais de 500 páginas, com conceitos científicos à prova de falhas. Ao mesmo tempo, uma das Linguistas mais respeitadas no mundo criou a linguagem dos Na’vi, um dialecto complexo, com gramática e vocabulário originais e criados de raiz para o filme, que os actores tiveram de aprender a falar fluentemente. Este trabalho de composição, fornece à estória uma dimensão e realismo que lhe dão uma autenticidade adicional e a tornam ainda mais excitante e absorvente.
As interpretações são imaculadas, principalmente se levarmos em conta a dificuldade de trabalhar num dialecto inexistente ou num sistema de Motion Capture que tira aos actores todo o sentido do espaço que os rodeia. Zoe Saldana é perfeita no papel de Neytiri, nativa responsável pela aprendizagem e integração de Jake na tribo. Um dos triunfos de “Avatar” é que as interpretações não são ofuscadas pela tecnologia. O sistema de captação de movimentos utilizado em Gollum, no segundo e terceiro filmes da trilogia d’ “O Senhor dos Anéis“, foi aperfeiçoado ao ponto de todas as micro expressões do rosto dos actores serem aproveitadas, criando seres foto realistas e com uma alma à escala humana. Sam Worthington e Sigourney Weaver são um bom reflexo disso, uma vez que as suas expressões humanas se mantém perfeitamente reconhecíveis nos seus Avatares. São duas excelentes interpretações a que se juntam as de Stephen Lang e Giovanni Ribisi (intensos nas suas personagens) e Michelle Rodriguez, que, na cena em que decide não continuar com a sua missão, protagoniza um momento comovente que resume a dicotomia e dramatismo da estória.
Mas é nos efeitos especiais e no seu surpreendente 3D, e sua importância no futuro do cinema, que “Avatar tem sido mais analisado. A nível de efeitos, não há muito a dizer, Cameron mais não faz do que aumentar a escala e a quantidade daquilo que já nos foi apresentado. O nível de detalhe é altíssimo, mas principalmente por causa do perfeccionismo conceptual (e da tal enciclopédia) do que pela sua materialização. É no processo de Motion Capture que está a maior inovação a nível de efeitos, ao aperfeiçoar o processo criado em Gollum, e não seguindo aquele que tem vindo a ser usado até à exaustão por Robert Zemeckis (que, confesso, não me fascina e não me atrai minimamente, pois as personagens me parecem falsas, como que desenhadas por cima da imagem captada e não criadas a partir dela). No 3D é que está a verdadeira novidade, apesar de, mais uma vez, Cameron apenas aperfeiçoar um sistema já existente (e que pudemos contemplar pela primeira vez em “U2 3D“). A diferença é que, enquanto no filme-concerto o movimento era limitado, pois as câmaras estavam no solo ou sustentadas por gruas, em “Avatar” as câmaras tinham de ter uma portabilidade e liberdade de movimento que até agora não era possível. O sistema de captação por duas objectivas distintas que fundia as imagens captadas numa só, era feito por câmaras que tinham uma dimensão e um peso que as tornava impossíveis de utilizar num filme de acção. As câmaras agora criadas e utilizadas são muito mais pequenas e leves, permitindo a captação de qualquer tipo de plano ou movimento. E essa inovação é a parte de “Avatar” que pode dar mais frutos no futuro, estando já a ser usadas por nomes como Peter Jackson, Steven Spielberg e Tim Burton.
Mas esse futuro pode ser enganador. Se o principio está aqui, a forma como será usado poderá não ser a melhor. É preciso que a indústria tenha consciência de que, sim, é preciso fazer filmes que sejam experiências que para serem usufruídas na totalidade necessitem de ser vistas em sala, mas que só a forma não é suficiente. O 3d é realmente a ferramenta, não só pela dimensão e sensação, mas principalmente porque encarece o preço do bilhete, criando lucros que disfarçam a tendência de distanciamento do espectador. Mas, fazendo um aparte, “Paranormal Activity“, que eu considerei um objecto estranho, era também uma experiência que resulta melhor colectivamente do que na solidão do lar. E sem 3D, recorrendo apenas a uma estória que mexe com as emoção e medos do espectador, e torna a experiência colectiva, muito mais interessante. Ou seja, a arte de contar (ou recontar) estórias tem de acompanhar o avanço tecnológico, para não se correr o risco do formato se tornar, em pouco tempo, redundante. Mais um factor a ter em conta: Foi hoje anunciado que, sensivelmente daqui a um ano, “Avatar” estará já disponível em Blu-Ray 3D, assim que o formado já estiver a ser distribuído. A mim, parece-me demasiado cedo para se perceber que efeito terá o 3D na volta dos espectadores ao cinema.
Mas, voltemos à vaca fria. “Avatar” é um tremendo espectáculo, um filme que desafia os sentidos do espectador, mas também a sua capacidade de se emocionar. A estória é suficientemente cativante para isso, e está muito bem realizado e interpretado. Aliás, o efeito do 3D vai-se desvanecendo à medida que o filme avança, não só devido ao acostumar do nosso olhar, mas também ao facto do último terço ser de acção frenética, o que torna a profundidade menos perceptível. É um filme que pretende deslumbrar, mas também, se o espectador o quiser, pô-lo a pensar. Sim, nunca se viu nada assim, e durante o filme senti-me como se estivesse em 1927 a ver “The Jazz Singer” (1º filme sonoro) ou em 1929 a ver “E tudo O Vento Levou” (1º filme em 70mm a cores). “Avatar” poderá não ser a salvação do cinema enquanto indústria, mas é uma experiência que tão cedo não poderá ser repetida e Cameron ganhou claramente a aposta, mesmo que não ultrapasse os resultados de “Titanic“. Só espero que não demore outros 12 anos a estrear novo filme.
Classificação: 5/5