Atrasado, para cumprir a tradição, aqui fica a minha lista do que de melhor se fez no Cinema 2021. Antes, nomearei aquelas que foram as minhas piores experiências cinematográficas do ano, e as menções honrosas, aqueles filmes acima da média que ficaram de fora do top 10.
Os Piores.
“Halloween Kills” de David Gordon Green.
Entre o potencial, herdado do filme anterior, e o resultado final, este é provavelmente o fracasso do ano. Tudo o que me apraz dizer sobre isto, já o fiz aqui.
Classificação: ★★★★★
“Old” de M. Night Shyamalan.
Mais um filme com uma premissa interessante, mas que se espalha ao comprido na sua execução. E o problema até é recorrente na cinematografia de Shyamalan (em “The Happening” ou “Lady in the Water“, para dar apenas 2 exemplos), o destino devia ser tão importante quanto a viagem. Neste caso, a viagem nem é assim tão estimulante, muito por culpa de uma montagem pavorosa e um guião com diálogos tão inverosímeis quanto involuntariamente cómicos.
Classificação: ★★★★★
“Hypnotic” de Matt Angel e Suzanne Coote.
Kate Siegel, uma das grandes actrizes da actualidade, em busca de um projecto que lhe dê o mais que merecido reconhecimento (principalmente fora da protecção do marido, Mike Flanagan), não merecia que Angel e Coote fossem tão incompetentes. Desde o acéfalo guião até à mise-en-scéne desesperada e inadequada, “Hypnotic” é uma enorme contradição. É um filme datado, dos anos 90, feito agora. Alguns de vocês devem lembrar-se dos thrillers produzidos no rescaldo de “Basic Instinct“, com psiquiatras e psicólogos a darem dores de cabeça a pacientes e policia. Este “Hypnotic” é uma compilação de todas as piores partes desses filmes. Eu adoro a Kate Siegel, mas nem ela consegue fazer milagres.
Classificação: ★★★★★
Menções Honrosas.
“Nomadland“, de Chloé Zhao.
Estreado no princípio do ano, ainda da colheita americana de 2020 e com vários Óscares conquistados, foi um daqueles filmes que foi perdendo fôlego e relevância ao longo do ano, a favor de outros títulos que superaram melhor o efeito novidade. Além disso, a habituação aos efeitos da pandemia reduziu-lhe o carácter utópico e urgente. No entanto, aquilo que fica, e que já tinha referido aqui, mantém-se. A sua humanidade honesta será sempre desarmante.
Classificação: ★★★★½
“Ghostbusters: Afterlife“, de Jason Reitman.
A sequela mais aguardada do ano, e que se esperava fosse regeneradora do espírito do original (depois do completo falhanço que foi a sequela/reboot/coisa de 2016), superou todas as expectativas. Não só é fiel ao espírito do original, como ali alicerça a sua premissa, jogando a sua cartada definitiva no factor nostalgia. Sim, “Ghostbusters: Afterlife” presta serviço aos fãs (e não há nada de errado nisso), mas fá-lo com seriedade e empenho, não descurando nenhum dos elementos da saga, dando-lhe continuidade e abrindo novos caminhos para o futuro. E veste as novas personagens de tanta personalidade que é impossível não nos apaixonarmos por este universo novamente.
Classificação: ★★★★★
“Dune“, de Denis Villeneuve.
A maior fragilidade de “Dune” está expressa logo no início, quando junto ao título aparece o subtítulo “Part One”. Não se sabia antes da estreia que este seria um filme incompleto, mas aquilo que mais surpreendente é onde e quando isso nos é revelado. Não é que haja algo de errado em ser uma primeira parte, vimos o mesmo em “IT“, mas aí a revelação era feita no final do filme, depois de estarmos satisfeitos com o que tinhamos acabado de ver. Em “Dune” soa a desculpa antecipada, depois de uma introdução que promete muito, vem o aviso de que não veremos tudo. Pode ser encarado como uma preparação, mas feita assim, a quente, acaba mais por ser uma desilusão do que outra coisa. E depois o filme, do ponto de vista narrativo, é aquilo que pode ser, pouco satisfatório. Não é só o facto da estória não ter uma conclusão, mas pelo facto de que no final a sensação que fica é de que estas duas horas e meia foram apenas uma preparação, um preâmbulo, para o que veremos no futuro. Além disso há uma dificuldade em criar empatia ou relacionamento com estas personagens. Tudo aqui parece etéreo e pouco familiar. E isto é o que o filme tem de menos bom, porque tudo o resto é excelente. Villeneuve já nos habituou a visuais deslumbrante e meticulosamente pormenorizados e aqui mantém o seu estilo particular. Artísticamente, “Dune” é primoroso e enche-nos todas as medidas. Era só preciso que a estória fosse menos aberta, com uma semi-conclusão mais satisfatória, e estaria certamente numa posição muito alta do top 10.
Classificação: ★★★★★
“È Stata La Mano Di Dio“, de Paolo Sorrentino.
É uma comédia de costumes, uma estória de amadurecimento e passagem à idade adulta, um drama familiar e existencialista. O novo filme de Sorentino é também um fresco italiano com raízes no cinema de época com referências ao Fellini de “Amarcord”. Mas é quando muda de tom que assume aquilo a que vem: tocar-nos, emocionar-nos. Tem uma excelente galeria de personagens e interpretações sólidas que as tornam tridimensionais. Peca por ser um pouco longo e pela mudança de tom ser tão abrupta, mas é um filme sólido e que nos mantém relacionados com ele, o que justifica a sua candidatura ao Óscar, em representação da Itália.
Classificação: ★★★★★
“The Making of ROCKY VS. DRAGO by Sylvester Stallone“, de John Herzfeld.
Este é um documentário surpreendente, por várias razões. A primeira é que surgiu de forma natural, sem ninguém estar à espera, publicado no canal da loja de Stallone no youtube. Durante 93 minutos acompanhamos Stallone enquanto aproveita o confinamento para reeditar “Rocky IV“. Herzfeld consegue mais com um iPhone aqui do que com uma equipa de filmagens em todos os filmes que fez, porque a sua proximidade com Stallone resulta em conversas profundas sobre o processo de (re)criação artística. O resultado é poético, filosófico, obsessivo, cómico e enternecedor. É fundamental para os fãs do actor/realizador, mas sobretudo para aqueles que nunca o levaram a sério. O filme completo pode ser visto aqui.
Classificação: ★★★★½
“O Lobo Solitário“, de Filipe Melo.
Só não está no topo do meu top 10 por ser uma curta-metragem, o que levaria a uma comparação injusta entre curtas e longas. Mas, já o disse aqui, é um dos filmes do ano e espero ansiosamente que o Filipe se aventure nas longas. Talento para isso não lhe falta, como já o provou em “Os Vampiros” e “Balada Para Sophie“.
Classificação: ★★★★★
“The Human Voice“, de Pedro Almodóvar.
Outra curta que não está no top 10 pela mesma razão da anterior. Aliás, “The Human Voice” não só tiraria o lugar a “Madres Paralelas”, como provavelmente estaria mais alta na lista. É um trabalho pungente de Almodóvar que faz aqui, de forma pragmática e objectiva, aquilo que faz melhor: explorar a psique feminina em situações sentimentais e existenciais extremas. Tilda Swinton nunca pareceu tão normal de forma extraordinária, criando aqui, e em pouco tempo, uma das personagens do ano.
Classificação: ★★★★★
Os Melhores.
#10 – “Madres Paralelas” de Pedro Almodóvar.
Outra vez Almodóvar, aqui com uma estória contada no feminino, depois do seu filme autobiográfico “Dolor y Gloria” ter feito parte do meu top referente a 2019. “Madres Paralelas” tem um problema relevante para mim: a sensação que me deu é que Almodóvar tinha duas estórias para contar e, não se decidindo sobre qual iria explorar, decidiu juntar as duas. Por um lado temos a estória de duas mulheres que se cruzam na maternidade e um acontecimento que terá repercussões nas suas vidas. Por outro, a estória de uma pequena comunidade numa aldeia que tenta recuperar os corpos dos seus familiares, supostamente sepultados numa vala comum durante a guerra civil espanhola. Ora, o título do filme remete para a primeira estória, enquanto o mesmo começa e termina com a segunda. Há aqui uma confusão conceptual que não é normal em Almodóvar. Parece que haveria muito mais para explorar em cada uma das estórias, se elas tivessem o seu espaço autónomo. No entanto, todos os elementos do seu cinema estão aqui e, quando consegue ser objectivo, cria momentos de grande expressão emocional. Penélope Cruz é, mais uma vez em Almodóvar, imensa, e acaba por ser ela a criar a coesão, sobretudo emocional, entre as duas narrativas. Não é, nem de perto, um dos melhores filmes do realizador mas, tal como em Tarantino, um menos bom Almodóvar é melhor do que a maioria dos demais.
Classificação: ★★★★★
#09 – “Benedetta” de Paul Verhoeven.
Paul Verhoeven sempre fez questão de ser um provocador, mesmo no seu período hollywoodesco. Mas a provocação nos seus filmes nunca é vazia nem gratuita, tem um propósito e uma função também narrativa, e “Benedetta” não foge à regra. Num convento do séc. XVII uma noviça chega a Madre Superiora, através de métodos pouco ortodoxos, ilusóes, mentira e luxúria, desafiando até as mais altas entidades da Igreja. Com esta premissa, Verhoeven está como peixe na água, desafiando-nos através do texto e da imagem (nem sempre ao mesmo tempo), numa narrativa tradicional e bem executada, com meios de produção superiores, principalmente para uma produção europeia. Faltava talvez um pouco mais de foco nas verdadeiras razões para Benedetta agir como age, que é como quem diz uma maior clareza na provocação e no que quer atingir. Tal como está, atinge tudo e todos, do religioso ao promíscuo, do sagrado ao profano. Como (quase) sempre em Verhoeven, é tudo uma questão de moralidade e do nosso posicionamento em relação a ela. E já não é pouco.
Classificação: ★★★★★
#08 – “Supernova” de Harry Macqueen.
Uma terna e fatalista estória de amor, a que dois enormes actores se entregam de forma crua e intimista. É um dos vários filmes deste ano que retrata alguém com demência, uma doença que tem tido cada vez mais visibilidade e cujas características potenciam o drama. Neste caso, o de um casal homosexual em road trip pela inglaterra, visitando amigos, família e lugares do passado, enquanto o membro doente do casal ainda tem memórias dessas pessoas e lugares. Há obviamente conflitos interessantes, que se geram no casal sobre a forma de lidar com a doença, sem que isso nos seja imposto de forma panfletária ou moralista, mas sim com uma naturalidade desarmante. Aliás, é essa a força enorme deste pequeno filme que passou praticamente despercebido, lidar com assuntos sérios e moralmente desafiantes com honestidade e naturalidade. Aqui, parece mais simples do que realmente é.
Classificação: ★★★★½
#07 – “Promising Young Woman” de Emerald Fennell.
É, se quisermos, a versão adulta de “Hard Candy“, filme em que uma adolescente abre caça a pedófilos na internet e, quando um morde o isco, vai confrontá-lo, torturá-lo e tentar fazer justiça pelas próprias mãos. Aqui, trocamos o abuso sexual de menores pela agressão sexual a mulheres ‘indefesas’, e às consequências que isso têm nas suas vidas. Pode parecer pouco original, mas o facto é que “Promising Young Woman” compensa em personalidade, irreverência e pragmatismo, na abordagem arriscada (e em que a maior parte do risco é assumida por Carey Mulligan) a um tema cada vez mais na ordem do dia. É um revenge movie educativo, um film-noir em rosa-choque. É importante para orientar consciências, mas com o cuidado de não se levar demasiado a sério.
Classificação: ★★★★½
#06 – “Pig” de Michael Sarnoski.
Não estarei certamente sozinho ao afirmar que “Pig” foi a minha surpresa do ano. Por aquilo que a storyline deixava prever e por aquilo a que Nicolas Cage nos foi acostumando. Sarnoski soube pegar nessas expectativas, potenciá-las e subvertê-las de forma a transformarem-se naquilo que o filme acaba por ser. É a melhor interpretação de Cage em muitos anos, talvez décadas. É um conto moral, simultaneamente terno e violento, disfarçado de estória de resgate e vingança, disfarçado de road movie. É um filme existencialista, cujas questões são tão claras que podemos colocá-las a nós próprios. Mas é sobretudo uma viagem melancólica pelo íntimo de uma grande personagem.
Classificação: ★★★★½
#05 – “The Father” de Florian Zeller.
O outro filme sobre demência deste top e sobre o qual já falei aqui. Conquistou este lugar sobretudo pela forma como nos ilude, mudando quer o foco quer o ponto de vista. E pela forma brutal (no verdadeiro sentido) como nos volta a puxar à realidade.
Classificação: ★★★★½
#04 – “Nobody” de Ilya Naishuller.
“Nobody”, já aqui apelidado por mim de ‘porrada elegante’, consegue a proeza de colocar um filme inconsequente tão perto do topo. É divertimento puro, de elevada qualidade, e não ambiciona ser mais do que isso.
Classificação: ★★★★½
#03 – “The Power Of The Dog” de Jane Campion.
28 anos depois de “The Piano“, Jane Campion volta a ser uma das protagonistas da próxima edição dos Óscares, sendo, ainda antes de conhecidas as nomeações, a principal candidata aos prémios principais. E não é para menos, “The Power Of The Dog” tem muitos parelelismos com “The Piano”. São ambos filmes de fôlego, de grandes espaços, de natureza e sua opressão. Há o contraditório do espaço com a claustrofobia social e emocional. E há a tensão e a raiva provocada por frustações sexuais reprimidas. São filmes humanos no limite do racional, do que podemos conjecturar através da magnifica caracterização das personagens, com destaque para o quarteto principal, mas sobretudo Benedict Cumberbatch. Há também paralelismos com o humanismo de “BrokeBack Mountain“, mas Campion consegue trilhar outros caminhos nos mesmos temas. E consegue sobretudo dar-lhe uma forma própria, mas assente nos formalismos do género. O resto é subtileza, bom gosto, depuração narrativa e emotiva, temperados por 4 décadas de experiência.
Classificação: ★★★★½
#02 – “Druk” de Thomas Vinterberg.
Desde que escrevi sobre ele aqui, “Druk” venceu o Óscar de melhor filme internacional e tornou-se um fenómeno um pouco por todo o lado. E não é para menos, é uma celebração da vida, da noção de que mesmo o ordinário por ser extraordinário. É um filme desafiador, no bom sentido.
Classificação: ★★★★½
#01 – “Titane” de Julia Ducournau.
Venceu Cannes, sem ninguém estar à espera. E talvez ninguém esperasse porque “Titane” é um filme que não se enquadra em nenhum género nem nenhum tipo. Podemos dizer que é de horror, mas isso não chega para o definir. Nem o drama, o thriller, o erótico. Ducournau volta a subverter as convenções, como já o tinha feito em “Raw“, mas aqui vai mais além. Não é apenas o choque do espectador que a realizadora quer alcançar, mas sim que esse choque perdure, que se entranhe e fique ali, dormente. “Titane” não passa por nós, fica à espera que satifaçamos a nossa ânsia de respostas, de apaziguamento. Porque não é fácil vê-lo. A sua violência crua e explícita cega momentaneamente, quando fechamos os olhos antecipando horror. Porque é visceral e sente-se. E nada é gratuito. Há uma intenção marcada e marcante, que nos prende ao filme, e a estas personagens, que são tão imperfeitas que só nos podem deslumbrar ou enojar. Mas nunca deixar indiferente…
Classificação: ★★★★½