“Nomadland“, de Chloé Zhao, é o grande favorito à vitória nos Óscares do próximo Domingo. A questão é que é um filme atípico, sinal dos tempos de incerteza que vivemos, em que ansiamos por realismo e normalidade e contacto humano. “Nomadland” é o favorito por ser uma projecção do desejo colectivo actual. Não que seja um mau filme, ou um filme menos merecedor do galardão, longe disso. Mas será que teria atraído toda esta atenção se não estívessemos a atravessar uma pandemia?
Fern é uma viúva sexagenária que perde tudo na última grande depressão. Sozinha, a viver numa carrinha percorre o Oeste americano, abraçando o estilo de vida nómada, de trabalho em trabalho, conhecendo pessoas e locais, sempre de passagem, evitando criar laços ou raízes.
“Nomadland” é, aparentemente, um filme sobre a liberdade, o desprendimento. Numa altura em que a nossa sociedade está voltada para o consumo, para a posse, para o status, o emprego e todas essas tretas, Zhao tenta resumir a vida ao essencial, à natureza humana. É um estudo antropológico de um certo tipo de pessoas, os inadaptados, aqueles que sentem sempre que não se encaixam em lugar nenhum, que não se adaptam a regras, nem constrangimentos de qualquer tipo. E é um filme atípico porque é de uma honestidade desarmante. E contracorrente.
Essa honestidade existe na forma e no conteúdo. Não há aqui artifícios de qualquer género. Tudo é filmado in loco, com luz natural, e grande parte do elenco é amadora. Há dias falei aqui do movimento Dogma 95 a respeito de “Druk“. “Nomadland”, estando num ponto geográfico muito distante (mas não oposto) acaba por ir beber muito ao manifesto, mas, à semelhança de Thomas Vinterberg, Zhao escolhe quais regras seguir e quais ignorar. São filmes irmãos separados pela lingua e pelo espaço. Esse realismo impresso no filme é fundamental para uma identificação colectiva que, como já disse, acontece pela necessidade de mudança colectiva de ponto de vista. Ou, se calhar, de ponto de fuga.
Também fundamental para essa identificação é Frances McDormand. É difícil imaginar qualquer outra actriz a ser Fern. A afinidade que a actriz tem com a personagem é notória e acrescenta realismo e, consequentemente, empatia com o espectador. McDormand permite que, mesmo que não tenhamos nada a ver com o estilo de vida nómada ou com qualquer tipo de desprendimento físico, nos identifiquemos com as escolhas de Fern e estejamos do seu lado nesta viagem. E acabamos a admirá-la pela coragem que não temos de fazer o mesmo.
E é isto o cinema, projectar-mo-nos para outras realidades, por mais próximas ou distantes que estejam. “Nomadland” acaba por ser o filme despido e crú que precisávamos, para nos orientarmos nestes tempos dificéis. A sua desarmante simplicidade acaba por ser contagiante. É um filme sincero e optimista, triste e inspirador. E um ponto que quero destacar, a propósito da inspiração, é o uso da música. É subtil e parca, mas quando aparece enche-nos os sentidos e amplia as emoções no ecrá. É quase um crime que Ludovico Einaudi não esteja nomeado para um Óscar (penso que seja por a música não ter sido escrita de propósito para o filme, mas mesmo assim).
Concluindo, “Nomadland” é o filme que precisámos nesta altura e o mais apropriado para o regresso aos cinemas e à vida em sociedade, desconfinada e (semi)livre. Quando há cerca de um ano pensávamos que esta pandemia nos faria repensar a vida em sociedade e tornar-nos todos mais humanos uns cons os outros, estávamos redondamente enganados. Percebemos isso várias vezes ao longo deste ano. Mas enquanto houver pessoas como Zhao e McDormand, a fazerem filmes honestos (sem moralismos nem panfletos) como este, teremos muitas oportunidades para pensar nisso, se assim o quisermos.
Classificação: ★★★★½