10 Anos / 20 Escolhas #6 – 2014.

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Entramos na 2ª metade da iniciativa de aniversário do laxanteCULTURAL, e a 6ª convidada é a Sofia Santos do girl on film. Apenas conheço a Sofia via facebook, mas é das pessoas com quem criei uma amizade cultural mais sólida e empática. Também é com quem mais troco recomendações, comentários e opiniões sobre muito do que vemos. O blog da Sofia tem a particularidade de se focar na moda, aplicada ao cinema e à televisão, ou vice-versa, com uma forte componente visual. Não é raro, ao visitar as suas publicações, escapar-me um redondo ‘What The Fuck?’. Tem um espírito crítico muito próximo do meu e uma personalidade vincada que transparece nos seus textos. É irónica, contundente, por vezes controversa, mas sempre sincera. Não é por acaso que, ao longo destes 10 anos (ou grande parte deles), tenha crescido a amizade , o respeito e a admiração que tenho por ela. Obrigado Sofia, pela tua participação nesta modesta efeméride.

A escolha da Sofia Santos – “The Wolf Of Wall Street” de Martin Scorsese.

The Wolf Of Wall Street - Poster

Um dos benefícios deste obsequioso convite do Pedro foi o de me ter proporcionado um motivo para “re, re” rever “The Wolf of Wall Street“. O filme de Martin Scorsese estreou em território nacional em Janeiro de 2014 e representa a quinta colaboração entre o realizador e Leonardo DiCaprio.

À distância de 5 anos, a história do filme continua a ser fascinante. “The Wolf of Wall Street” conta a história – real – de Jordan Belfort, um corretor da bolsa de Nova Iorque que praticou fraudes de seguros e corrupção em Wall Street na década de 1990.

The Wolf Of Wall Street 01

Foi entregue a DiCaprio a missão de contar, na primeira pessoa, a história de Belfort, um jovem bonito, promissor, destemido e ansioso por riqueza e coube a Scorsese contar esta ascensão, manutenção e queda deste homem de negócios num antro de droga, sexo, dinheiro e gente com poucos escrúpulos.

“The Wolf of Wall Street” tem muitos pontos favoráveis, na verdade é difícil, para não dizer impossível, apontar maus filmes a Scorsese. Podia criar aqui um texto imenso com todas as coisas que mais gosto no filme mas vou poupar os leitores do laxanteCULTURAL à leitura de uma espécie de enciclopédia.

The Wolf Of Wall Street 02

Não posso no entanto deixar de justificar a minha escolha. Em primeiro lugar, é um filme com interpretações sublimes, não só de DiCaprio mas também de Jonah Hill, Matthew McConaughey, Kyle Chandler e sem esquecer, a lindíssima e talentosa Margot Robbie.

Em segundo lugar, e como escreveu Richard Brody no The New Yorker, “is an exuberant, hyper-energized riot. It’s like mainlining cinema for three hours, and I wouldn’t have wanted it a minute shorter”. São horas de puro prazer cinematográfico, criados com um ritmo perfeito, com cenários, guarda-roupa e banda sonora irrepreensíveis e pensados ao detalhe.

The Wolf Of Wall Street 03

Por último, e talvez seja este o aspeto que mais distancia os que não gostaram do filme daqueles que adoraram: o cinismo. Se esperam que “The Wolf of Wall Street” seja um apedrejamento público dos crimes económicos de Belford, não é o que vão ver. Scorsese e o argumentista Terence Winter revelam o lado podre e sombrio da indústria financeira, mostram explicitamente os jogos de bastidores, a perversão da economia norte americana, a arrogância e elitismo dos denominados novos-ricos, os vícios, o alucinante ritmo de vida e a postura errada perante o engano e a manipulação de gente humilde. Tudo isto é contado com exagero, excesso e – é aqui que o termo cinismo pode ser enquadrado – é que nunca é feito um julgamento óbvio ou público às ações de Belford. Aliás, há uma personagem no filme que parece realmente compreender a enormidade e maldade das ações de Jordan, o agente do FBI Patrick Denham, interpretado por Kyle Chandler. Mas mesmo o investimento colossal do agente em confrontar o corretor perante a justiça é abafado perante o, também ele promíscuo, sistema judicial americano.

The Wolf Of Wall Street 04

Caberia a Scorsese o papel de apresentar em praça pública uma espécie de argumento contra Belfort, esperando que a justiça interviesse? Não me parece. Sobretudo se tivermos em conta que os crimes são públicos, deveras conhecidos e na verdade o homem por detrás deles está em liberdade, a ganhar dinheiro com o livro autobiográfico (que está na base do filme) e a dar conferencias como orador motivacional.

Quem conseguir distanciar a (in)justiça da arte, tem aqui três horas de puro prazer cinematográfico e nunca esquecendo as sábias palavras de Mark Hanna (Matthew McConaughey): “The name of the game, moving the money from the client’s pocket to your pocket.

A minha escolha – “Enemy” de Denis Villeneuve.

Enemy - Poster

Mais uma vez, ao olhar para a lista de estreias de 2014, vários foram os filmes sobre os quais me apeteceu escrever: “The Babadook” de Jennifer Kent, “Boyhood” de Richard Linklater, “Nightcrawler” de Dan Gilroy e “Nymphomaniac” de Lars Von Trier, mas a escolha teria de recair sobre o filme que mais me encheu as medidas nesse ano. “Enemy“, de Denis Villeneuve, adaptado da obra “O Homem Duplicado” de José Saramago, que eu não li, é um magnífico film noir com contornos psicológicos que, mais do que nos surpreender, envolve-nos com o seu suspense, asfixia-nos com a sua estética, controla-nos as emoções com a solidez das personagens e mantêm-nos tensos muito para lá do seu final.

Enemy 01

Um professor de história vê um filme com um actor que é exactamente igual a ele (ambos interpretados por Jake Gyllenhaal). Tenta contactá-lo para se encontrarem. A mulher do actor (Sarah Gadon) confunde-o com o marido. Encontram-se num quarto de hotel e percebem que são idênticos, até têm as mesmas cicatrizes. O actor passa a seguir o professor e a namorada deste (Mélanie Laurent). Mais tarde decidem experimentar a vida um do outro, e respectivas namorada e esposa.

Enemy 02

Embora a storyline anterior pareça simples, a forma como Villeneuve conduz a narrativa é hipnótica e misteriosa. Como aquelas duas pessoas existem, idênticas, é um mistério que aparentemente fica sem resposta. Para mim, neste filme, Villeneuve é o diabo. E, se o maior truque do diabo foi convencer-nos que não existia, o de Villeneuve é fazer-nos pensar que não houve resposta ao mistério, quando o que fez durante todo o filme foi responder-nos. Há muitas teorias sobre o que realmente se passa, umas mais rebuscadas que outras, mas a certa é apenas uma (e as suas variações). Mas já lá vamos…

Enemy 03

Lembro-me de, aquando da estreia do filme, tê-lo discutido com o Tiago Ramos, do Split Screen (um dos próximos convidados desta iniciativa). A teoria do Tiago era rebuscada e com pouco fundamento, apenas um feeling. A minha, era fundamentada no próprio filme e nas pistas que Villeneuve vai espalhando pela narrativa, no confronto dos dois protagonistas com as outras personagens, principalmente a mãe do professor, interpretada por Isabella Rosselini. Mas o que aqui é absolutamente genial é que ambas as teorias são válidas, devido à ambiguidade que o realizador imprime em todo o filme. Podemos encaixar aqui praticamente tudo o que nos apetecer, ou o que faça mais sentido para nós.

Enemy 04

Mais, a forma como a fotografia e o magnífico tom seco (não é bem sépia, mas é acastanhado, quase tom de terra) que percorre todo o filme são utilizados imprimem-lhe uma áurea de mistério, como se aquilo não se passasse na nossa realidade, nesta sociedade multicolorida de que fazemos parte. Isso é simultaneamente um truque e uma pista para a resolução deste enigma. E depois há as aranhas. Várias, de várias formas e tamanhos, a pontuar a narrativa. O que raio querem dizer? O que significam? A resposta é tão simples, a ponto do próprio Villeneuve a ter dado em algumas entrevistas. E, porque o filme é tão fascinante, vou fazer o que raramento faço, uma secção com spoilers. Vou dar a classificação, mostrar o trailer e avanço com a minha teoria…

Classificação: 5/5

A partir daqui o texto contém SPOILERS para “Enemy”.

Leiam apenas se já viram o filme.

A resposta é simples, ou então não. Para mim, O professor e o actor são duas personalidades da mesma pessoa. Se essa pessoa tem ou não consciência disso não sei. Poderá tratar-se de um caso de dupla personalidade ou mesmo de esquizofrenia. Ou, como diz Villeneuve, no vídeo que está no fim desta secção, este filme é um documentário sobre o subconsciente do Jake Gyllenhaal (ou da sua personagem). E isto responde a tudo, e faz sentido pelas pistas que são deixadas ao longo do filme. Quando o professor se encontra com a mulher do actor, no exterior do seu local de trabalho, há uma tensão estranha, pela forma casual como ele fala com ela, uma estranha, e por ela achar que está a falar com o marido que a está a tratar friamente. E estas duas reacções são verdadeiras, porque na cabeça dele ele é apenas metade de si próprio. É professor e tem uma namorada. A outra parte dele, um actor (profissão bem menos segura) e casado à espera de um filho, não é conciliável com a primeira. Daí existir essa divisão na cabeça dele. Na verdade, o filme é sobre um homem que deixa a mulher grávida por uma amante por quem está apaixonado, e desiste de perseguir uma carreira de actor sem sucesso, arranjando um emprego (seguro) como professor de história.

Enemy 05

E aquilo que, durante o filme, me fez perceber isto, é o diálogo que ele tem com a mãe. A mãe junta estas duas pessoas numa só. A dada altura ela diz mesmo que ele tem dificuldade em manter a mesma mulher. Diz mais: que não quer ouvir mais, que ele é o seu único filho e ela a sua única mãe, que ele tem um emprego estável e devia tirar da cabeça a fantasia de ser um actor de terceira categoria. O diálogo está lá, mas quase de forma subliminar. Ainda por cima, a forma autoritária como ela lhe diz isto, e o contraste que faz com aquilo que estamos a sentir com a personagem dele, confusão, não nos permite, na maioria dos casos, assimilar esta informação. A cena em que tudo isto é dito é muito curta, e voltamos imediatamente ao actor e a novo encontro entre os dois.

Enemy 06

E depois há as aranhas. Se procurarmos por informação que relacione aranhas e psicologia, encontramos dezenas de artigos sobre o tema, que se foca sobretudo sobre o medo que elas representam. Sempre que aparece uma aranha no filme, existe algum tipo de confronto entre as duas personalidades, o encontro dos dois mundos distintos que existem na sua cabeça. As aranhas representam o medo de que as duas realidades entrem em conflito: a mulher e a amante, a profissão estável e o risco, uma relação estável e a sua promiscuidade. Mesmo a mãe e o julgamento que ela parece fazer dele. Além disso, um exemplo cinematográfico de aranhas que representam disturbios mentais é “Spider” de David Cronenberg. A analogia já tinha sido feita anteriormente.

Enemy 07

Portanto, a genialidade do filme está na forma complexa como trata um assunto simples. Não há aqui sociedades totalitárias com clones, não há invasões de aranhas gigantes, nada. Apenas um homem em conflito consigo próprio. Quase no final do filme, quando as suas duas personalidades trocam de posição, ele renuncia àquilo que lhe era prejudicial, a amante e a profissão de risco (mata-os num acidente de automóvel, e regressa ao seu consciente). Quando está em paz com a mulher, dá com a chave do clube de sexo e diz-lhe que terá de sair nessa noite. A derradeira aranha, em que a mulher se transforma, é novamente o medo de mais um conflito de personalidade. E, se atentarmos bem na cena, a aranha tem tanto medo dele como ele dela.

O que acharam desta minha teoria sobre “Enemy”, concordam ou têm uma diferente? E o que estão a achar desta iniciativa de comemoração dos 10 anos do laxanteCULTURAL?

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