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Preâmbulo
Toda a gente que segue este blog sabe da tremenda admiração que tenho pelo Filipe Melo, que começou a ser explictada nestas páginas aquando do livro “As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy”. Antes disso, já o conhecia de “I’ll See You In My Dreams” e “Um Mundo Catita“, mas é a parceria literária (e não só) com Juan Cavia que mais tem suscitado eco no laxanteCULTURAL.
A saga do lobisomem de meia idade e do entregador de pizzas deu origem a 4 volumes editados pela Tinta Da China, que há muito estavam esgotados. Agora, na nova editora Companhia Das Letras (que já tinha reeditado “Comer Beber” e “Balada Para Sophie“, é reeditada toda a saga num só volume magistral de quase 500 páginas, que contém o spin off inédito “As Fabulosas Aventuras De Madame Chen“.
Esta é também uma oportunidade de colmatar uma falha minha. Já tinha escrito sobre “As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy” aqui, e sobre “As Extraordinárias Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy II – Apocalipse” aqui. Vou portanto abstrair-me de o fazer novamente, e dedicar algumas palavras a “As Fantásticas Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy III – Requiem“, “Os Contos Inéditos de Dog mendonça e Pizzaboy” e “As Fabulosas Aventuras De Madame Chen”, mas vou começar por falar um pouco do calhamaço em si.
O Livro
Como objecto, “As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy” é requintado e portentoso, um omnibus que agradará aos fãs mas, sobretudo, terá a capacidade de atrair novos leitores. Há algumas pequenas diferenças entre este volume e os anteriores: os prefácios originais do Filipe Melo foram substituidos por apenas um para esta edição (mantendo-se os prefácios individuais de John Landis, George A. Romero, Tobe Hooper e Lloyd Kaufman) e os making of‘s originais foram substituídos por apenas um, mais abrangente e sucinto quando comparado aos dos outros volumes.
Mas, sobretudo para os leitores que já possuíam a coleção, este omnibus tem um conto original, um spin off se quisermos, uma origin story de uma misteriosa e fundamental personagem de três dos quatro volumes anteriores: Lo Pan a.k.a. Madame Chen.
E é aqui que surge a estranheza, quando se aborda este volume pela primeira vez. A primeira coisa que notei ao folheá-lo foi a falta de homogeneidade gráfica do livro. Enquanto todos os volumes anteriores eram de banda desenhada, este é uma novela gráfica. Não só isso como tem um desenho enraízado na tradição chinesa, no traço e na cor. E até o papel em que estas páginas são impressas é diferente de tudo o resto, perdendo o seu efeito brilhante. Sobre os efeitos que isto tem na leitura do conto, falarei mais abaixo, quando me debruçar sobre ele.
Se é verdade que este volume é um festim para os sentidos (pelo menos para três deles), o seu tamanho torna a sua leitura mais dificil ou, para ser mais concreto, requer mais preparação e cuidado na sua leitura. Isso faz com que a dedicação com que o lemos seja diferente da forma como liamos os volumes individuais. Há uma dedicação do leitor e um mais compenetrado empenho no manuseamento, o que torna a experiência diferente, mais próxima, mais intensa e até mais interessada na narrativa.
O último reparo que tenho a fazer ao livro enquanto objecto em si, é a ordem dos volumes. Está organizado pela ordem de criação, não de publicação em Portugal. É por isso que “Os Contos Inéditos de Dog Mendonça e Pizzaboy” aparecem em segundo neste livro, quando a edição original portuguesa foi editada por último, depois de “Requiem”. Mas falarei desse facto já a seguir.
“Os Contos Inéditos de Dog Mendonça e Pizzaboy“
Este volume reúne os 4 fascículos (deviam ser três com uma estória, mas passaram a quatro, com uma aventura isolada no quarto) que seriam editados na revista antológica “Dark Horse Presents“, antecipando o lançamento nos Estados Unidos do primeiro livro “As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy”, mais ou menos na altura em que em Portugal estaria a ser editado o segundo volume. É portanto por essa razão que estes contos, que incluem a origin story do próprio Dog Mendonça aparecem nesta posição no omnibus.
Ora quando foi editada por cá já todos os três volumes tinham saído, portanto a ordem de leitura foi um pouco alterada (eu tinha lido apenas a primeira parte, pouco depois de ler o segundo volume), mas o Filipe, talvez antecipando esta alteração, tornou as estórias destes contos independentes. Sim, tem a origem do Dog, mas não tem implicação prática nas outras estórias, apenas fornecem um contexto mais abrangente. Não só isso, como o Filipe aproveitou para se divertir e experimentar soluções narrativas, como a quebra da quarta parede e carregou as estórias com mais humor (e até mais tragédia) do que é costume.
Há aqui Holocausto e a ligação aos Nazis (que não sabíamos até aqui que vinha de trás), mas há também Sporty Cola e a Segurança Social para pagar. Há uma leveza que vinha do meio em que estava inserido. Eram estórias curtas que estavam no meio de outras estórias que não tinham nada a ver, mas que tinham de sobressair, de deixar memória, fosse pela estória em si ou pelo visual ou pelas duas coisas. Nesse sentido, estes contos foram eficazes no contexto original. Enquanto livro autónomo nem tanto, mas aqui, no omnibus, cumprem novamente o objectivo e fornecem às restantes narrativas uma amplitude que elas até agora não tinham.
Há apenas um aspecto negativo (e talvez a palavra seja muito forte) a apontar na apresentação destes contos em conjunto, que é o facto da sua estrura episódica de origem quebrar o ritmo narrativo a cada 8 páginas. Comprende-se e aceita-se, mas destoa do resto da obra e talvez a sua forma neste contexto devesse ter sido repensada.
Classificação (enquanto volume autónomo): ★★★★½
“As Fantásticas Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy III – Requiem“
Este foi outro volume sobre o qual não escrevi na altura em que foi editado, e a razão é um pouco mais complexa. Demorei algum tempo a digeri-lo e fui adiando a sua apreciação até deixar de ser oportuna, tendo sido relegada em função de outras. Não quer dizer que seja mau ou inferior em relação aos volumes anteriores, antes pelo contrário, mas houve vários factores que precisaram de amadurecer na minha consciência.
O primeiro tinha a ver com o facto de ser o tal famigerado terceiro capítulo, supostamente inferior, e ter de existir um esclarecimento interior para não ser injusto. Depois, havia uma mudança de tom que criava conflito com o conceito de trilogia e que era preciso apaziguar. Por último, continha vários conceitos reais (a omnipresente Segurança Social, o envelhecimento das personagens, as responsabilidades pessoais e sociais), apresentados de forma realista, que chocavam com o conceito de aventura fantástica a que estava acostumado na saga.
Posto isto, precisei de amadurecer este terceito volume e objectivá-lo na sua origem e intenções. Era assumidamente um capítulo final, o que lhe trazia também uma carga pesada de melancolia e luto. Mas era preciso filtrar o seu conteúdo e colocá-lo no contexto da grande aventura. Continuam a haver Nazis, e monstros de várias espécies e categorias, e ameaças globais a partir de Lisboa. Havia também um novo capítulo do passado de Dog que era preciso ficar resolvido num grande confronto final. E Madame Chen, ausente no segundo capítulo e que aqui volta com mais responsabilidade e protagonismo. E aranhas. Enormes aranhas à solta por Lisboa.
Este fantástico vídeo de promoção ao livro quebrou de tal forma a quarta parede que muita gente se sentiu insultada por ter acreditado nele, o que levou a insultos e cíticas a João Moleira, jornalista da SIC. Não era apenas uma brincadeira, era mais uma prova da grande capacidade do Filipe Melo para o storytelling e de que o livro continuava a afectar as emoções das pessoas (como tudo o que o Filipe faz).
Portanto a grande confusão para mim, foi talvez o amadurecimento do Filipe enquanto contador de estórias. Aqui, ele partilhava nós só os seus gostos e as suas influências, mas também os detalhes da sua vida que o atormentavam na altura. Este é o volume em que o Filipe se tornou o autor que é hoje e sem ele provavelmente os livros seguintes não seriam tão profundos e humanos. Há aqui uma humanidade real (a do autor) que até então tinha ficado de parte em prol da estória fantástica que ele queria contar.
Com a percepção de que ela poderia (e devia) ser incorporada em qualquer contexto, ficamos todos a ganhar. E essa é a principal mudança de tom da estória que me desarmou e que precisei de descodificar. Talvez fosse óbvio e eu é que não o percebi, provavelmente por ter expectativas preconcebidas diferentes. Nesta altura, o amadurecimento do Filipe enquanto autor provocou em mim uma amadurecimento enquanto leitor (e até pretenso crítico). Hoje aprecio este volume de outra forma, como um livro de fecho em que se deixa o que é preciso deixar, para a estória e para nós. Não é um volume inferior nem é desequilibrado. É só o mais humano dos três.
Classificação (enquanto volume autónomo): ★★★★★
“As Fabulosas Aventuras De Madame Chen“
Como disse quando falei do livro enquanto objecto, “As Fabulosas Aventuras De Madame Chen” destoa graficamente e narrativamente dos restantes volumes. É também o único conto deste livro que não conta com Santiago Villa na cor. Antes de o ler, conjecturei várias razões para este facto, partindo do princípio de que deveria haver uma razão externa para isto acontecer. E depois comecei a lê-lo.
E é um facto que a experência de leitura é diferente, não só dos restantes volumes contidos neste livro, como de todos os outros livros publicados pela dupla. É uma leitura contínua e mais exigente suportada pela genial arte do Cavia. está mais próximo de um romance, não fosse o facto de relegar as descrições para as imagens. Nota-se uma evolução narrativa do Filipe Melo, mais livre e simultaneamente mais objectiva.
A origin story de Lo Pan (ou Madame Chen) é assumidamente diferente. É, novamente, mais humana. O elemento fantástico dá aqui lugar a uma estória sobre pessoas reais e atrai-nos para a sua humanidade como se da nossa se tratasse. Sem que nos apercebamos, aquela estranheza inicial dá lugar a um estranho conforto. Estamos empenhados nestas personagens de uma forma intensa, a ponto de nos esquecermos do ponto de partida, o universo de um lobisomem de meia idade, um entregador de pizzas, um demónio com milhares de anos no corpo de uma menina e uma cabeça de gárgula.
E o Filipe vai-nos levando num caminho profundo pelas dificuldades de sermos únicos. De termos adversidades e conflitos externos com o nosso próprio interior. De sermos ostracizados por quem nos deveria amar e descobrirmos o amor onde menos se espera. Vamos, de forma lenta e contemplativa, pela condição humana, pelo heroísmo imposto aos fracos, pelos injustamente marginalizados por serem diferentes ou terem opções diferentes. E pela aventura de ser humano, talvez aquela a que se refere o título deste volume. Até àquele momento…
Há um momento neste conto que senti como se fosse um murro no estômago. A sua força vinha de muito mais do que a narrativa. Vinha da genialidade de um contador de estórias que nos levou num sentido contrário àquele de que sabíamos que íamos e num pequeno instante nos fez dar uma volta de 180º e colocar-nos no caminho original. É aquele momento em que percebemos que esta humanidade toda também pertence àquele universo, o dos montros e do fantástico. Na forma, aproxima-se muito do realismo mágico de “Balada Para Sophie”. A sensação que tive foi de o Filipe me apanhou à traição, sussurrando-me ao ouvido: “Esqueceste-te de que era eu, não foi?”
Foi. Tal como o maior truque do diabo foi convencer as pessoas de que não existe, o maior truque do Filipe foi convencer-nos de que estávamos a ler algo completamente diferente. Não é. É mais profundo, mais real e humano, mas isso dá-lhe dimensão e consistência não lhe altera o sentido. Com Cavia como seu fiel cúmplice, disfarçando na forma a sua intenção, o Filipe arrebata-nos novamente. Não há, no mundo, contador de estórias tão bom quanto aquele que nos faz acreditar no oposto das nossas convicções.
“As Fabulosas Aventuras De Madame Chen” não só faz parte deste livro e deste universo, como lhe dá dimensão humana e o transcende. É o canto do cisne mais belo e intimista que não sabiamos que desejávamos para esta saga. É um desafio conceptual que abre a obra futura da dupla ao ilimitado desconhecido. É, à semelhança de praticamente todas as obras do Filipe e do Juan, um trabalho que nos deixa a refletir e amadurecer sobre ele enquanto nos faz ansiar pelo próximo.
Classificação (enquanto volume autónomo): ★★★★★
Conclusão.
“As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy” é fundamental para quem gosta de estórias e de ser surpreendido pela inteligencia dos seus autores. Tem a vantagem de ter no seu interior o primeiro e o último trabalho da dupla, que nos mostra, a poucas páginas de distancia, uma evolução monumental. A versatilidade do Cavia é assombrosa (para quem está distraído e não conhece mais do que estes trabalhos da dupla) e está aqui bem evidenciada. E o Filipe continua a espantar-me com a evolução do seu storytelling. Aquela estranheza que eu tive quando folheei o livro pela primeira vez deu lugar a uma enorme admiração, pela subversão e superação das minhas expectativas, e pela enorme generosidade da partilha de um bem fundamental: a inteligência.
Classificação (enquanto omnibus): ★★★★★