Antes de entrar em “Prey“, “Predator” é um grande filme de acção que tem a particularidade de não querer ser mais do que isso, não descurando a qualidade e a inteligência, ou não fosse realizado por John McTiernan (um ano antes de “Die Hard“). Mais do que ser um veículo para Arnold Schwarzenneger, juntava-o a um grupo eclético na personalidade, mas homogéneo na musculatura e testosterona. Era um filme bélico mas cuidado, que se diferenciava no cinema de acção da altura pelo cuidado nos detalhes e objectividade na acção, focando-se sobretudo na intenção de, divertindo, contar uma boa estória, servida por personagens sólidas e tridimensionais. Além disso, criou uma criatura que tinha tanto de brutal como de enigmática, nas intenções, nas origens e na cultura. As várias sequelas e spin-offs optaram por tentar seguir a mesma fórmula, mas construindo uma mitologia em torno da criatura e tentando, de forma mais ou menos dissimulada responder a estas questões. O problema é que, com a excepção de “Predator 2“, nenhuma se preocupou muito com as personagens humanas, descurando a estória e apostando na gratuitidade da acção e na polivalência letal da personagem que lhes dava o título. Até “Prey”.
Em Setembro de 1719, nas grandes planícies do Norte, nos Estados Unidos, Naru é uma jovem Comanche que sonha em tornar-se uma das caçadoras da tribo, papel que é tradicionalmente reservado aos jovens do sexo masculino. Para o conseguir tem de contrariar a família e a tribo, e concretizar a sua Kahtaamia, ritual de passagem para a idade adulta e ao estatuto de herói, que consiste em caçar um animal que nos caça a nós, num duelo mortal. Quando um Yautja (raça alienígena a que pertence a personagem que conhecemos por Predador) é deixado nas proximidades para caçar as presas mais fortes e conquistar os seus troféus, Naru enceta-lhe uma caçada que lhe permita realizar a sua Kahtaamia.
“Prey” é o sétimo filme protagonizado por um Yautja (ou vários) e as suas presas (contando com os dois filmes “Alien Vs Predator“, que vamos deixar de fora desta análise, pela sua irrelevância). Ora, em relação aos restantes quatro, a ordem de lançamento é também a sua ordem qualitativa, ou seja, o “Predator” é o melhor, sendo mesmo um dos melhores filmes de acção dos anos 80, “Predator 2” é razoável e um bom divertimento, “Predators” é interessante, mas estranhamente desperdiça o seu potencial e “The Predator” está ao nível dos dois spin-offs, ou seja, mau (e, por isso, foi um fracasso na bilheteira). “Prey” é portanto um filme que ninguém esperava ansiosamente, nem mesmo a própria Disney (detentora da Twentieth Century Fox) que prescindiu de um mais lucrativo lançamento cinematográfico para o lançar no serviço de streaming Hulu, que tinha vindo a perder subscritores.
E vou dizê-lo já, por uma questão de pragmatismo: “Prey” é o melhor filme da saga, superando mesmo o primeiro. E eu sei que existe a questão da nostalgia, que nos põe o coração acima do cérebro neste tipo de questões. O que mais tenho ouvido nos reaction videos a “Prey” que tenho visto é “o primeiro é sempre o primeiro” (que não quer dizer absolutamente nada), ou “eu vi o primeiro quando era miúdo e continua a ser o que gosto mais” (que na verdade apenas quer dizer que gostamos mais de ser miúdos do que adultos). E são as mesmas pessoas que não tem problema em dizer que “The Godfather: Part II” é melhor do que “The Godfather” ou “T2: Judgement Day” é melhor do que “The Terminator“. A diferença é o tempo que separa a produção entre os filmes. Quando estamos a falar de décadas (35 anos entre “Predator” e “Prey”, para ser preciso) o tempo tem peso. O filme cresceu em nós e connosco, há memórias afectivas que o nosso subconsciente transforma em qualitativas. É preciso compreendermos isto de forma a criar distância emocional que nos permita objectividade na análise. No último ano tivemos outros dois casos de sequelas separadas por mais de 30 anos do original que foram também prejudicadas pela nostalgia: “Ghostbusters: Afterlife” e “Top Gun: Maverick” (as duas frases acima também foram muito ditas pelas pessoas que expressaram opinião sobre os mesmos). A diferença é que, sendo sequelas, estes dois filmes puderam fazer da nostalgia o seu centro, construindo estórias e personagens sólidas dentro do legado e acrescentando-lhe algo directamente. A tarefa de “Prey” era bem mais difícil.
Mas Dan Trachtenberg compreendeu bem a tarefa que tinha em mãos. Ao colocar a acção do filme 268 anos antes da do primeiro, abdicou de fazer referências directas aos filmes anteriores, mas colocou-os no nosso subconsciente como referências futuras. Ao mesmo tempo, partiu de uma tela em branco que lhe permitiu criar algo com uma identidade própria. Não só isso como identificou questões, problemas e referências nos filmes anteriores e deu-lhes resposta e profundidade. É uma espécie de psicologia revertida adaptada ao cinema. E, principalmente, colocou em tudo um cuidado extremo nos detalhes, que dá solidez à nova narrativa. “Prey” é por isso um filme por camadas, temos uma boa estória com personagens fortes, temos uma mitologia a que podemos (e devemos) acrescentar, temos um estudo natural da cadeia alimentar e da dicotomia predador/presa, e temos uma relação emocional que precisamos de honrar e fortalecer. O resultado disto tudo junto soa a fresco e original, apesar de extremamente familiar.
“Prey” é dedicado à nação Comanche, mas não se fica pela dedicatória. Tudo aqui é genuíno, feito com apoio e consultoria da própria comunidade Comanche, de que fazem parte todos os actores que os interpretam. Jhane Myers, a produtora, é membro activa da Nação Comanche, o que só por si implica honestidade, respeito e rigor no que nos é apresentado, ao contrário dos westerns que os retratavam no passado. E isso nota-se do principio ao fim, na direcção artística, no guarda-roupa, nos costumes e tradições, no idioma (vou falar disto mais à frente) e na forma como tudo nos é apresentado. O filme tem um pé no western, mas é muito mais do que isso. Durante uma boa parte parece um documentário do canal National Geographic ou História, misturado com um programa BBC Vida Selvagem, de Sir Richard Attenborough. E isso é importante porque nos dá uma maior compreensão da narrativa, sem nunca parecer que estamos a ouvir uma palestra ou a assistir a uma aula. O resultado é que quando o Yautja aparece, as suas intenções e propósito são mais claros do que nunca. Há sequências de vida animal, e principalmente da sua cadeia alimentar, que nos mostram porque umas presas são escolhidas e outras poupadas. O Predador é um desportista e só há glória quando se enfrentam os mais fortes.
Em termos de storytelling, “Prey” é exemplar na construção da narrativa. Trachtenberg disse numa entrevista que a grande inspiração para o filme foi “Mad Max: Fury Road“, que lhe mostrou como contar uma estória recorrendo-se sobretudo da acção, e servindo-se dela para fazer avançar a narrativa. O cuidado na componente visual é aqui de extrema importância, pois tudo o que vemos (mais do que aquilo que é dito) vem carregado de exposição e explicações. A fotografia de Jeff Cutter é perfeita nesta distribuição, com os planos maiores de exposição e enquadramento e planos mais fechados e pormenorizados que chamam a atenção para o que temos de saber. E há engenho na captação das imagens, quer na exploração das grandes paisagens e no seu enquadramento histórico, como na coreografia das elaboradas cenas de acção que nunca nos deixam sem perceber tudo o que aconteceu e porquê. Até o desenho da criatura nos diz muito sobre o seu contexto, origem e performance. A sua tecnologia é 268 anos menos desenvolvida do que o Yautja do primeiro filme. Sim, tem na mesma visão térmica e uma mira por laser, mas o canhão de laser no ombro é substituido por uma menos prática arma que dispara projécteis físicos. O próprio capacete, onde está incluída a mira, é feito do crânio de um River Ghost, criatura que vimos em “Predators”, e é menos tecnológico do que os capacetes metálicos dos filmes anteriores. Essa atenção ao detalhe é fundamental para a solidez da narrativa, e nenhum pormenor foi deixado ao acaso.
Claro que para tudo funcionar tem de assentar em personagens sólidas e bem interpretadas. Amber Midthunder é perfeita como Naru, a protagonista que nos leva com ela nesta viagem e nos prende sentimentalmente à mesma. Além de grande expressividade, tem uma linguagem corporal com que é fácil identificarmo-nos, o que é fundamental para contar a estória sem texto, narrando a estória através da acção. Todo o restante elenco é excelente, principalmente os membros da tribo, com destaque para Dakota Beavers como Taabe, o irmão mais velho de Naru e aquele que a ajuda a perseguir o seu sonho, mesmo tendo consciência de que vai contra as convenções e do quão difícil ele é de conquistar, principalmente para alguém supostamente tão frágil. Nota também para Dane DiLiegro, ex-jogador de basket com 2.06m (menos 14cm que Kevin Peter Hall, o Yautja do primeiro filme) como o predador. A sua composição (apenas física) é cheia de detalhe e aproxima o perigo do espectador. Os seus actos são melhor compreendidos, melhor coreografados e executados e mais ameaçadores devido ao carácter que põe na sua execução.
Mas tenho de referir uma personagem que eleva ainda mais o filme, Sarii, o cão que acompanha Naru em todas as etapas da viagem. Há 40 anos, desde “John Carpenter’s The Thing“, que não via um cão com tão grande sentido de presença. É assustador como, em praticamente todos os planos em que aparece, Coco (o seu verdadeiro nome) parece ter consciência da sua expressão e do seu movimento. Tudo o que faz parece pensado e concordante com o que os restantes personagens humanos estão a fazer. O que é mais impressionante é que esta foi a sua primeira experiência como actor. A produção estava à procura de um cão da raça Carolina Dog (que actualmente é rara), por ser descendente directo da raça de cães deste período histórico, e encontraram-no num canil e adoptaram-no apenas dois meses antes da rodagem. É impressionante como com tão pouco tempo de preparação consegue dividir o protagonismo do filme com Midthunder e cativar o espectador desde o primeiro momento. Lembram-se da cena do filme de Carpenter, em que o Husky percorre um corredor lentamente, observando atentamente cada divisão antes de escolher aquela onde entra? Coco faz isso em todas as cenas em que entra neste filme, mostra intenção e inteligência. Depois da rodagem, foi adoptado por um membro da equipa.
Não posso deixar de mencionar a banda sonora de Sarah Schachner e o trabalho da equipa de som. Sendo o primeiro trabalho de Schachner (até agora tinha trabalho sobretudo em videojogos e TV), é interessante que este seja o primeiro filme da saga que não tenha nenhuma referência ao trabalho de Alan Silvestri no primeiro filme. É uma opção corajosa, mas a mudança de tom adiciona ao filme uma frescura e identidade próprias, distanciando-se dos sons militares e bélicos, para contar uma estória épica de passagem à idade adulta. O trabalho de som é impressionante e intenso, adicionando muitas vezes imagens à imagem. O omnipresente som característico do predador que revela a sua maior ou menos proximidade, por exemplo, torna o filme mais claustrofóbico e ameaçador. Ainda falando do som, há uma versão totalmente falada em Comanche*, que acrescenta autenticidade ao filme e lhe dá um interessantíssimo tom documental. E isto foi pensado desde o inicio, com os diálogos nas duas linguas a serem escritos de forma a que as palavras coincidissem foneticamente, para que os movimentos de boca não parecessem desajustados. Também ajuda que tenham sido os próprios actores a gravarem a segunda versão.
Concluindo, “Prey” é uma das melhores adições a uma saga em muito tempo, e tem a capacidade de a complementar em tudo o que lhe faltava antes, e de a ampliar no tempo e no espaço. Sim, existem referências aos outros filmes, há frases que são ditas que já ouvimos antes de outros protagonistas, há imagens que referenciam outras anteriores, e há até elementos deste filme que já apareceram mais tarde. Há uma unidade muito grande deste com os outros filmes, mas há sobretudo um afastamento calculado que abre muitas possibilidades para o futuro deste franchise. É sobretudo uma bela e emocionante estória de superação, e quem é que não gosta de encontrar isso nos sítios mais improváveis?
Classificação: ★★★★½
*Infelizmente, o desrespeito da Disney para com o público português continua. Primeiro deixaram de fazer edições físicas nacionais dos seus títulos, exceptuando alguns filmes de animação (apenas em DVD, porque para as crianças chega) e da Marvel e Lucasfilm (em edições inferiores quando comparadas com as estrangeiras). Depois, mesmo nas edições de outros países, deixaram de incluir o idioma português, impedindo-nos de os comprar em Espanha, por exemplo, onde ainda fazem boas edições, com vários idiomas europeus mas não o nosso. Agora, disponibilizaram a versão Comanche de “Prey” no Disney+ como um extra, mas a única legenda disponível para esta versão é em inglês para deficientes auditivos. Bastava colocarem a faixa audio em Comanche na versão normal (que tem muitas faixas áudio e legendas em vários idiomas) e estava resolvido, mas não. A versão mais interessante do filme e que mais precisava de uma boa legenda não a tem. É inadmissivel.