Antes de mais, e por uma interrupção de cerca de dois meses na publicação de artigos nesta iniciativa (por motivo de força maior, imprevísivel), é imperativo pedir desculpa, não só a quem nos lê, mas principalmente a quem aceitou participar na mesma, dedicando-lhe algum do seu tempo e esforço. Posto isto, o oitavo convidado a festejar connosco o nosso 10º aniversário é o Tiago Ramos, do Split Screen. O Tiago foi outro dos bloguers que conheci no encontro do Fantas em 2010, e foi desde logo um dos mais dedicados a cobrir o festival. As suas coberturas eram as mais completas, quer em números de filmes vistos, quer em textos críticos produzidos para o Split Screen, chegando mesmo a ser premiado pela blogosfera por isso. Quando me disse que ia deixar de cobrir o festival, em 2013, achei logo que o mesmo ia ficar mais pobre. E ficou. Era um prazer ver os filmes com o Tiago, discuti-los com ele (ou não, às vezes bastava um olhar para dizer “sobre este não vale a pena”), comparar teorias, ou simplesmente partilhar a alegria de termos visto um filme do caraças. Ocasionalmente, fazemos o gosto à tertúlia cinematográfia via facebook, mas não é a mesma coisa. Muito obrigado Tiago, por teres saído da ‘reforma’ e aceitado participar nesta iniciativa.
A escolha do Tiago Ramos – “Arrival” de Dennis Villeneuve.
Escrever sobre filmes foi durante muito tempo uma (quase única) paixão. Foi através dela que tive a oportunidade de conhecer pessoas, que tal como eu, também partilhavam esse mesmo motivo de afeição. Muitos amigos recordo desse tempo, em que o Split Screen estava no seu auge e não na podre agonia que vive nestes dias, mas com ainda muita dificuldade de o desligar definitivamente da ficha. Foi através dela que conheci o Pedro Afonso, um amigo improvável, cuja ligação desenvolvi através das maratonas de Fantasporto, de muitas conversas à porta do Rivoli, já bem tarde na noite. As melhores memórias dele, recordo precisamente do ano 2013, precisamente o derradeiro ano da minha ligação ao Fantasporto, que terminei e, ainda me recordo, contra todos os pedidos do Pedro.
O tempo avançou e a minha ligação ao Split Screen e outros projetos relacionados foi-se desgastando. Encontrei outras paixões que tomaram conta dos meus dias, cada vez mais pequenos, parece-me. 2016 foi um ano interessante para mim, cheio de grandes desafios e quando, com quase 30 anos, decidi voltar a estudar e entrar na faculdade para estudar Comunicação (Empresarial). Curioso que essa nova paixão encontrou uma ligação com o cinema nesse mesmo ano. Tinha eu terminado de estudar uma cadeira que me havia fascinado imenso, que me levou a descobrir o universo da Linguagem, da sua origem, dos signos linguísticos.
O melhor filme de 2016 para mim, podiam ser outros: “Animais Noturnos“, “American Honey” ou “Ela“. Mas foi “O Primeiro Encontro” que teve um impacto magnífico: abraçou os meus recém-adquiridos conhecimentos e envolveu-os num filme magnífico e inesperado.
Denis Villeneuve é aquele realizador que nunca me desiludiu desde que o conheci (não, não o conheço desde pequenino, mas está lá perto), com o seu “Polytechnique“. Entre isso, adaptou ao cinema um dos meus autores favoritos, com uma mestria incrível (José Saramago com “O Homem Duplicado“) ou fez um thriller que me fez sentir verdadeiramente medo (sim, leram bem: medo), com “Prisoners“. Sempre flutuando entre géneros cinematográficos, foi a sua primeira incursão nos blockbusters que iluminou o meu 2016.
“Arrival” é um ovni cinematográfico. Não só pela sua óbvia conexão aos temas alienígenas, mas também porque aborda o tema com uma perícia invejável. Não deixa de ser um blockbuster e um filme de ficção-científica tecnicamente irrepreensível a nível de efeitos especiais e visuais. Mas é também um filme melancólico, poético, que nos estimula a mente, pela construção de uma narrativa cativante e intrincada. Amy Adams tem uma das melhores interpretações da sua carreira e foi escolhida a dedo, no papel de uma linguista que faz uma primeira ligação (sobretudo uma conexão emocional) à vida extraterrestre. A forma como o argumento foi construído, cheio de níveis, com tanto por descobrir e com conhecimento técnico profundo sobre o tema da Linguística e ainda assim sem nunca perder a ligação emocional à história e personagens, é uma grande lição de escrita.
“Arrival” confia na inteligência do seu público, conseguindo ser erudito e ainda assim, ser um filme de pipocas. Um filme sobre a Humanidade e a compreensão da mente e coração, um filme quase meta, que liga a Linguagem ao modo como vemos o mundo. Um clássico instantâneo que será lembrado por muitos anos vindouros.
A minha escolha – “Hitchcock / Truffaut” de Kent Jones.
Este era o filme mais aguardado por mim em 2016. A razão é o livro sobre o qual é este documentário ser a minha bíblia, desde que comprei a edição portuguesa editada pelas Publicações Dom Quixote, na feira do livro do Porto em 1993 ou 1994. Já o li várias vezes, tenho 12 horas e meia do aúdio original (a entrevista feita por François Truffaut a Alfred Hitchcock nos anos 1960), conheço toda a obra do Hitchcock, tenho livros, filmes e tudo o que é relacionado com aquele que é o meu realizador preferido de todos os tempos. A expectativa era grande, para ver o que este filme traria de novo ao entendimento da obra do mestre, para alguém como eu. E a resposta, infelizmente, é: nada.
Para mim, “Hitchcock / Truffaut” é redundante, maçador e uma quase completa perda de tempo, embora recordar a obra do Hitchcock nunca poderá sê-lo. As expectativas estavam muito altas, foi o que foi. Portanto, para esta análise, e porque é importante fazê-la, tenho de me tirar da equação. Este filme não é para alguém que conhece a obra original (o livro), mas é absolutamente indispensável para quem não a conhece, ou mesmo a filmografia do Hitchcock. É para recém-nascidos, portanto. E esta piada só não tem graça porque a maioria dos jovens de hoje, os chamados millenials, realmente não conhecem (porque não querem) uma das maiores, mais criativas, desafiadoras e inteligentes figuras do cinema do século XX. Porque não existem filmes dele nos serviços de streaming, os torrents não lhe prestam atenção (e é preciso saber o que procurar) e as televisões simplesmente não passam os filmes que interessam (a não ser nos canais de cabo e muito esporádicamente).
“Hitchcock / Truffaut”, o filme, apresenta-nos o livro, o seu contexto e depois mostra-nos a nata dos realizadores actuais em depoimentos banais, em que dizem quando o leram pela primeira vez e a importância que teve na sua formação e no seu trabalho. E é aqui que o filme começa realmente a perder força, pela quantidade de realizadores escolhidos, e pela brevidade a que os seus depoimentos são forçados. Martin Scorsese, Peter Bogdanovich , Paul Schrader, David Fincher, Wes Anderson e Olivier Assayas são alguns dos nomes que tentam descrever a importância de Hitchcock na história do Cinema, no único material original que faz parte do filme.
Sobre o livro propriamente dito, não há muito a mostrar. Nada foi filmado aquando das gravações e as únicas imagens disponíveis são as da sessão de fotografias promocionais, dirigida pelo próprio Hitchcock, e que fazem parte do livro. Sobre estas fotos e imagens de arquivo ouve-se o aúdio das gravações originais, em excertos breves que pontuam os pontos de vista dos entrevistados. Sobre o livro que serve de base ao filme, é apenas isto. E, talvez por isso, a certa altura perde-se o foco e o filme já não sabe o que quer ser. A segunda metade, e sem que se perceba porquê, é uma análise de alguns filmes e cenas de alguns filmes do Hitchcock, principalmente “Vertigo“, “Psycho” e “The Birds“. Não há nada de errado nisto, a não ser que qualquer edição de um destes filmes tem muito mais conteúdo do que o pouco que aqui está. A única relação que esta parte do filme tem com o livro é, mais uma vez, excertos do aúdio da entrevista de Truffaut, em que o Hitchcok fala dos filmes em questão.
Uma abordagem que seria bem mais interessante, e que aqui é completamente menosprezada, seria a análise da conversão do aúdio original em narrativa escrita. Truffaut fez um trabalho admirável de organização cronológica do discurso de Hitchcock. Nas referidas conversas, salta-se muito no tempo e na obra do mestre, mas a formação jornalística do francês nota-se muito no resultado final em papel, transformando o livro num objecto bem mais interessante de acompanhar do que o aúdio original (até porque o discurso a duas linguas com a intérprete no meio torna-se maçador). Abordar isso no filme, apesar de o tornar bem mais interessante, desviaria o foco da obra de Hitchcock, algo em que estes documentaristas estavam mais interessados.
Mais uma vez, para quem desconhece por completo a vida e obra dos intervenientes, este pode ser um filme revelador, e pode abrir as portas a uma das maiores, melhores e mais desafiantes filmografias da história. Mas nem sequer é claro que o motivo do filme fosse esse. A sensação que dá é que alguém descobriu que as gravações existiam, e resolveu fazer um filme em que as pudesse incluir, independentemente do que esse filme viesse a ser. Não traz absolutamente nada de novo. Coincidência ou não, a outra grande desilusão que tive nos últimos anos foi “78/52“, filme que tenta esmiuçar a cena do chuveiro em “Psycho”, mas não consegue ir além do que já conhecemos dos extras das várias edições existentes no mercado, ou do que o próprio Hitchcock conta no livro da entrevista com Truffaut.
Resumindo e concluindo, talvez Hitchcock já tenha sido estudado o suficiente para que qualquer nova tentativa de o fazer resulte redundante, e o seu único propósito seja a actualização da linguagem para novas audiências. Embora seja um objectivo nobre, é absolutamente dispensável para alguém como eu, que pretenda saber um pouco mais. Sobra a consolação de revisitar a obra do mestre, ainda que sob falso pretexto.
Classificação: 3/5
E porque estamos a festejar o nosso aniversário e somos mãos largas, quem estiver interessado nas 12 horas e meia do aúdio original que deu origem ao livro, entre em contacto comigo, que eu faço-lhas chegar.