Esta semana o laxanteCULTURAL faz 10 anos, e resolvi fazer uma iniciativa para comemorar a efeméride. Convidei 10 bloguers de cinema, que conheci desde que abracei esta actividade e com os quais construí uma relação de admiração, companheirismo e amizade, e convidei-os a escrever sobre um filme de um desses 10 anos. Além das escolhas de cada um deles, também eu escolhi um filme de cada um desses 10 anos, totalizando 20 escolhas, plurais, pessoais e transmissíveis, que pretendem fazer um apanhado destes 10 anos a nível de filmes que marcaram a blogosfera e este cantinho dela. Não foram criadas quaisquer restrições à escolha do filme, ao comprimento do texto e ao seu conteúdo, nem à abordagem que seria dada, sendo apenas pedido que justificassem a escolha. Os anos de 2009 a 2018 foram sorteados pelos bloguers convidados e serão apresentados em 10 artigos, um por cada ano de convívio convosco , com a escolha do convidado e a minha.
Assim sendo, 2009 saiu em sorte ao Nuno Reis, do Antestreia, e não poderiamos desejar melhor simbolismo. O Nuno é um dos bloguers mais trabalhadores e com mais cultura cinéfila, e foi, nos primeiros anos de vida do laxanteCULTURAL, uma referência, uma espécie de irmão mais velho (apesar de mais novo). Foi também através do Nuno e das suas iniciativas (como os encontros de bloguers que foi organizando) que conheci alguns dos outros convidados desta iniciativa. É um amigo, como são todos os que aceitaram esta empreitada, que conheci porque há 10 anos decidi meter-me nisto. Celebremos então em forma de trabalho, e o do Nuno, a quem eu agradeço por tudo, foi o que se segue:
A escolha do Nuno Reis – “Moon” de Duncan Jones.
Nesta ocasião tão especial do Laxante Cultural, foi-me pedido que reavaliasse um filme de outros tempos. Com muito gosto aceitei este convite do Pedro, mas por curiosidade o ano que me calhou foi precisamente 2009 e portanto, eis o #10yearchallenge aplicado ao cinema.
Quanto comecei nisto dos tops, era fácil pegar em filmes com dez anos – os que tinham marcado a minha adolescência e me tinham moldado como pessoa e cinéfilo – e vê-los com o mesmo olhar. Com a idade mudei, mudaram os meus favoritos e mudou a minha forma de ver Cinema.
O ponto mais difícil foi a escolha do filme a destacar. O distante 2009 foi um belo ano de produção cinematográfica. Quando olhei para o meu top, o filme que escolhi como melhor do ano foi um que ainda se mantém como fenomenal, “Mr. Nobody”. O problema? Só estreou cá em 2012 e pelas malditas regras do jogo tinha de me basear no calendário de estreia nacional. Portanto, debrucei-me sobre a lista do ICA e comecei a ver o que se podia aproveitar. Por sorte a lista está invertida e ao começar pelo fim do ano depressa fiz a minha escolha: “Moon“. Poucos filmes simbolizam mudança como este.
Em 2009
“Space: the final frontier.” Os meus pais podem ter crescido inspirados pela Apollo 11, “Star Trek: The Original Series” e “2001” e a pensar que aquele era o primeiro passo da odisseia espacial da Humanidade. Eu por outro lado tive a sorte de ter “Star Trek: The Next Generation” e “Contact”, mas faltava a chegada a novos astros. Era como se a tecnologia tivesse regredido e não saíssemos do terceiro calhau a contar do Sol. A ida à Lua era uma recordação distante, e Marte continuava a dizimar as sondas enviadas. Por isso a FC espacial na vizinhança não tinha a mesma piada. Há muito que sonhávamos com novos mundos e novas civilizações. “Moon” dizer que o nosso satélite era uma colónia mineira fazia tanto sentido como vinte anos antes “Total Recall” dizer que Marte era uma colónia mineira. Pura especulação.
Sem spoilers, o drama de uma pessoa sozinha na lua, dependente das comunicações, discutia o que era a existência, as regras de conduta das corporações, o significado da humanidade. Era uma história humana de um realizador promissor e o icónico Kevin Spacey dava voz ao robot. No papel principal estava um promissor Sam Rockwell. Depois de ter trabalhado com vários dos maiores realizadores em papéis menores e tendo coberto a FC com títulos de culto como “Galaxy Quest” e “Hitchhiker’s Guide to the Galaxy”, começava a ser um rosto reconhecido por “The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford” ou os cá estreados em 2009 “Choke”, “Frost/Nixon” e “G-Force”, ou em 2010 “Iron Man 2” e “Everybody’ Fine”.
A chamada Hard Sci-Fi estava de volta e o filme tornou-se de culto numa questão de semanas.
Em 2019
O que se passou??
O primeiro ponto é que Kevin Spacey passou de nosso vilão favorito da ficção para vilão mais odiado da vida real. O nome ganhou a capacidade de evacuar as salas de cinema onde esteja como se fosse um gás tóxico e os estúdios que se aperceberam a tempo fizeram um “Face/Off”.
Duncan Jones tal como a sua conta de Twitter diz, é o homem que fez “Moon”, não tendo conseguido repetir o êxito desse filme. Pouco depois tentou os filmes de acção com toques de FC em “Source Code”, demorou cinco anos a trazer uma adaptação falhada do vídeo-jogo de fantasia “Warcraft”, e no ano passado trouxe uma FC ligeira em “Mute” pelas mãos da Netflix. O seu género é claro, mas não está a conseguir chegar ao público como se imaginava. Bem, o outro grande novo nome da FC de 2009 era Neill Blomkamp e todos sabemos o que se seguiu a “District 9”…
Sam Rockwell disparou. Ainda que 2008-2010 tivessem sido grandes anos de trabalho, depois a sua carreira estabilizou e entre “Cowboys & Aliens”, “Seven Psychopaths” “Poltergeist” e “Mr. Right”, não se pode dizer que tenha feito grandes contribuições para a sétima arte. Mas veio 2017 e com o incrível “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri“ chegam as primeiras nomeações e vitórias em prémios fora da ficção-científica: Oscar, Globo e BAFTA de actor secundário. Como se isso não bastasse, no ano seguinte repete as três nomeações com “Vice” (ainda que não ganhe). Um actor que não tinha nenhuma nomeação desde 2013, em 2017 e 2018 está novamente entre os melhores da sua arte. Não surpreende – sabíamos que Rockwell é grande há quase vinte anos – mas parecia ter fugido dos holofotes.
Quanto a “Moon”, faz muito mais sentido. Anteviu o flagelo das redes sociais e como podemos ficar desligados das pessoas apesar de comunicarmos com elas. Em parte alertou para a automatização na produção e como os humanos serão dispensados das missões mais perigosas.
A sociedade começou a mexer-se. Passamos de uma geração que já tinha saído do país algumas vezes para uma que pode sair para ir conhecer um bocadinho do mundo a cada fim-de-semana. Num espaço de dez anos as empresas de aviação low cost levaram toda a gente para todo o lado. Pelo telefone viam os mapas com todos os pontos avaliados por quem já lá esteve. Sem falarem a língua, chamaram veículos para os levarem até onde queriam. E o mais importante, Elon Musk cansou-se de esperar pela extinção da espécie e tomou em mãos a missão de nos levar para o infinito e mais além, ou pelo menos até Marte. Voltamos a acreditar. Voltamos a sonhar. Voltamos a suspirar por filmes que nos digam que a Lua está aqui ao lado.
Ao mesmo tempo, as alterações climáticas estão a atacar de forma cataclísmica. Enquanto uns negam que as vacinas funcionam, outros negam que a Terra gira e todos ignoram que estamos a destruir o que nos permite viver. Sem falar de xenofobia, racismo, sexismo, fundamentalismo… É o século XXI e parecemos estar na Idade Média. Daqui a um século estaremos à porta da caverna a esfregar pedras para fazer fogo?
Voltaremos ao espaço, mas conscientes que temos de ir porque este mundo não nos aguenta muito mais. E cada vez está mais claro que a única solução para esta sociedade é levar cada um ao espaço para ver como todos este gigante planeta é um mero ponto perdido na imensidão do espaço e as ideias e convicções de milhões não interessam para nada. Carl Sagan já o disse várias vezes nos anos 70 e 80, mas agora nem “Cosmos” podemos ver porque também o sucessor de Sagan foi acusado de comportamentos indignos.
Só passaram dez anos e se pudesse partia para a Lua ou Marte de tão louco que este mundo ficou. Enquanto não temos naves espaciais, pelo menos temos o Cinema como escape.
A minha escolha – “Inglorious Basterds” de Quentin Tarantino.
Não podia ser outro. “Inglorious Basterds” é o filme mais recente dos que habitam a lista dos 10 Filmes da Minha Vida (que eu fiz quando participei numa iniciativa do Keyzer Soze’s Place em 2011, e que em breve irei transcrever para o laxanteCULTURAL). Apesar de já ter escrito sobre ele aqui, não podemos simplesmente contornar algo que faz parte da nossa vida. E, se em 2011, a minha escolha estava fincada na admiração, hoje está confirmada na história. Lembro-me de, quando o vi em 2009, ter sentido uma espécie de murro no estômago, um (re)despertar para a realidade de que a ficção é livre, e pode alterar a própria história em que se baseia. Parece que é algo de que nos esquecemos, da liberdade que a ficção encerra, e que Tarantino há 10 anos fazia questão de nos lembrar. Lembro-me de pensar que o cinema não mais seria o mesmo, que problemas que filmes como “Valquíria” tinham deixariam de existir. Que todos os argumentistas e realizadores iriam explorar mais essa liberdade, espantar-nos com a sua criatividade, entusiasticamente reescrever a história através das suas estórias, e, talvez, dar novos mundos ao mundo. Era um sonhador, portanto.
10 anos depois, o filme de Tarantino continua a ser o único a ter tido o descaramento de alterar a história (pelo menos com esta dimensão). E cada vez mais, existirá menos coragem para repetir a façanha. Em 2009 o facebook tinha 1 ano. Era pequenino e não tinha ainda força para amordaçar ninguém. Hoje, qualquer tentativa de mexer com quase tudo, é imediatamente julgada, condenada e executada sem dó nem piedade em questão de minutos ou horas. Qualquer opinião sobre temas sensíveis é imediatamente escrutinada e violentada, por quem é contra, ou mesmo por quem é a favor, só porque sim. A liberdade está condicionada e a arte amordaçada. Em 10 anos o mundo piorou, os idiotas passaram a ter voz, num meio que rapidamente atrai mais idiotas e juntos conseguem combater a sensatez e todos os valores mais básicos que deveríamos preservar. O filme que iria mudar tudo, não mudou afinal nada, porque a arte tem cada vez menos expressão (basta olhar para a programação das televisões generalistas nacionais). A curva é descendente e continuará a sê-lo.
Isto torna “Inglorious Basterds” num filme cada vez mais actual e urgente. É preciso pôr os olhos nele. Até Tarantino precisa de pôr os olhos nele. Os seus dois projectos seguintes redundaram nos seus piores filmes, por razões diferentes. “Django Unchained” é esquizofrénico. É Tarantino realizador agrilhoado por Tarantino argumentista, não tendo o primeiro capacidade crítica e decisiva perante o ego do segundo. O filme precisava de objectividade e sacrificio de partes do guião (e principalmente de alguns diálogos) para ser um filme mais coerente e funcional. “Hateful Eight” é melhor do que o anterior, mas não passa de mais do mesmo. Nada aqui reflete a originalidade a que Tarantino nos foi habituando de filme para filme, sendo uma colagem de referências anteriores que resulta muito melhor na forma do que no conteúdo. É “Reservoir Dogs“, Django e “Kill Bill” misturados, requentados e voltados a servir.
Não querendo agoirar, em ano que estreia novo filme do realizador, com o melhor (ou pelo menos maior) elenco da sua filmografia, é importante relembrar “Inglorious Basterds” e torcer para que Tarantino volte à forma daqueles tempos, e nos torne a dar outra obra tão visceral e autêntica, tão pura e simultâneamente suja, e tão, mas tão inspiradora. É pedir demais, eu sei, mas é a esperança que nos faz continuar e existe sempre a certeza de que o pior de Tarantino será sempre melhor que o melhor da maioria.
P.S. – E a homenagem que o filme encerra ao cinema tradicional e clássico (e físico), é lindíssima e, infelizmente, cada vez mais nostálgica.