Na continuidade da divulgação do meu trabalho criativo, trago-vos agora a Cena 1 do meu guião, “A CURA ou ensaio sobre a regeneração e a emenda“. É um drama, centrado em duas pessoas com passados complicados, que se conhecem em alturas complicadas das suas vidas e, contra a sua própria vontade, desenvolvem uma relação amorosa que sabem ter pouco ou nenhum futuro. A cena que vos trago é uma espécie de prólogo, uma vez que a cena seguinte já se passa 4 anos depois, e é uma cena extensa, intensa e complicada (e cara) de se fazer, mas que marca o tom do filme e define todos os obstáculos emocionais que uma das personagens, a Dra. Ana (advogada que se apaixonará pelo seu cliente, acusado do assassinato da sua mulher), terá de superar ao longo do filme. O resto do filme é composto basicamente com cenas de diálogo, daí esta cena ter de ser tão intensa e visualmente forte, para ser lembrada até ao final.
Apenas um aviso antes de a começarem a ler:
O TEXTO QUE SE SEGUE CONTÉM LINGUAGEM E DESCREVE SITUAÇÕES SUSCEPTÍVEIS DE FERIR A SENSIBILIDADE DE ALGUNS LEITORES.
[scrippet]1. EXTERIOR – AUTO-ESTRADA – DIA
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Estamos na berma de uma auto-estrada. Vários carros passam apressadamente nas várias faixas de rodagem. A câmara faz um travelling e posiciona-se sob a faixa central.
Aproxima-se um carro ligeiro com um homem ao volante e uma mulher no lugar do passageiro. Passam mesmo por baixo de nós.
Estamos agora no interior do carro. A mulher é a Dra. Ana, e o condutor é o marido, Paulo. Ela tem 26/27 anos, ele tem mais 2. Ela veste formalmente, conjunto saia/casaco, camisa sóbria e usa o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo. Ele veste uma camisola e calças de ganga. Vão calados, ele sério e de ar carregado. Ela sorri para ele, toca-o ao de leve no braço com as pontas dos dedos, procurando chamar-lhe a atenção. Ele acusa o toque, mas permanece de semblante carregado e de olhos fixos na estrada. Ela quebra o silêncio.
DRA. ANA
Estou grávida.
Ele olha para ela sem mudar de expressão. Ela interrompe o sorriso.
DRA. ANA
Que se passa?
PAULO
É meu?
Ela mostra-se surpreendida e chocada com a pergunta. Ele mantém a expressão séria e volta o olhar para a estrada.
DRA. ANA
O que é que se passa, Paulo?
Ele olha-a nos olhos.
PAULO
Diz-me tu.
Volta a olhar em frente.
DRA. ANA
De que é que tu estás a falar?
PAULO
Eu vi-vos.
Ela continua perplexa a olhar para ele. Ele continua.
PAULO
No teu escritório hoje de manhã.
Ela tem agora uma expressão de derrota.
DRA. ANA
Não é aquilo que parece.
Ele exalta-se e consegue olhá-la nos olhos.
PAULO
E o que é que parece?
Apesar de ter os olhos rasos de lágrimas, ela mantém a voz num tom muito calmo, triste, mas firme.
DRA. ANA
Não interessa. Nada é o que parece.
PAULO
A mim, pareceu-me que lhe estavas a fazer um broche.
Ela faz uma pausa, baixa os olhos para o colo. Quando os levanta e olha em frente continua.
DRA. ANA
Eu precisei de o fazer.
Ele dá uma gargalhada.
PAULO
Porque é que não lho mordeste, como me fizeste a mim uma vez?
DRA. ANA
Não tem nada a ver uma coisa com a outra.
PAULO
Pois não, eu nunca te forcei a nada.
DRA. ANA
E o que é que chamas a isto?
PAULO
A isto o quê?
DRA. ANA
A esta discussão. Eu ganhei o meu primeiro caso hoje, percebi que estou grávida, que é aquilo que ambos queríamos, quis dar-te a novidade e partilhar essa alegria contigo…
PAULO
Qual alegria? Eu vi aquele gajo a enfiar-te a pila na boca hoje de manhã e vens-me falar em alegria? Quantos maridos conheces que ficam alegres quando descobrem que lhes puseram um par de cornos?
Ela exalta-se.
DRA. ANA
Pára! Não confundas as coisas. Ele nunca me fodeu.
Serenamente, ele continua.
PAULO
Para mim, vai dar ao mesmo.
Ele tira um charro já enrolado do bolso da camisa e coloca-o entre os lábios. Vai com mão ao bolso das calças à procura do isqueiro, sempre com os olhos na estrada e a outra mão no volante. Ela olha-o.
DRA. ANA
Julguei que tinhas deixado essa merda. Sabes que só o cheiro me deixa mal disposta.
Ele não responde e continua à procura do isqueiro. Ela grita-lhe.
DRA. ANA
Estou a falar contigo!
Tira-lhe o charro da boca. Ele sacode-lhe a mão e empurra-lhe o corpo de encontro à porta do lado dela. O charro cai-lhe junto aos pés, entre os pedais.
PAULO
Foda-se!
Ele ergue a mão no ar, fechada num punho e olha-a nos olhos. Ao ver a expressão de medo no olhar dela, volta a abrir a mão e baixa-a. Volta o olhar para a estrada.
PAULO
A partir de agora, eu também meto na boca o que quiser.
Ela encosta a cabeça ao vidro, com uma expressão de derrota enquanto duas lágrimas lhe descem o rosto. Ele solta o cinto de segurança e baixa o peito de encontro ao volante, sempre com o olhar na estrada, e tenta encontrar o charro com a mão. Passa com os dedos muito perto, de um lado e de outro, mas não lhe toca. Sobe o tronco e procura-o com o olhar. Neste momento, um carro passa-o pelo lado esquerdo e vem para a faixa de rodagem em que eles estão. Quando levanta o olhar ele apercebe-se da aproximação.
PAULO
Foda-se!
Ele trava a fundo e volta a acelerar, virando o volante e afastando-se para a faixa da direita, não reparando que, nessa faixa, se aproxima um camião que lhe bate na traseira do lado direito. O carro faz um peão e vai de encontro ao rail da auto-estrada. Ao bater-lhe, o carro levanta vôo por cima e rebola pela berma, até embater numa árvore. Aproxima-mo-nos agora lentamente do carro que está virado com as rodas para cima. Através do vidro do passageiro vêmo-la ainda no seu lugar, agarrada ao cinto. O vidro do lado do condutor está partido. o corpo dele está do lado de fora, debaixo do carro, apenas com as pernas à vista.
Fade Out
CORTE DE CONTINUIDADE
Fade in
Vêmo-la de costas, ajoelhada em frente ao carro, a poucos metros de distância. A câmara move-se lentamente, num circulo à sua volta, até ficar de frente para ela. Por detrás dela, na berma da auto-estrada, notamos a silhueta de uma multidão que se junta para observar. Por entre os vários carros parados destacam-se as luzes dos carros da Policia e do I.N.E.M., contra o azul cinzento do céu de fim de tarde. Ela está aparentemente calma, a fumar o charro que ele ia acender.
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O guião está completo, registado, e tem sido enviado para várias produtoras Portuguesas (aquelas que o aceitaram ler).
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